Ele conheceu outra...- Perce Polegatto

   

 
“Ele conheceu outra. E, da noite para o dia, revelou ter se cansado de mim. Algo que eu não percebi até o último momento. E continuava fascinada com tudo o que estava vivendo. Isso me entorpecia um pouco, baixava minha guarda. Confundia os sinais de alerta. Amortecia meu senso de observação.”
Sua voz linda parecia estar narrando sequências de um filme em que a personagem conta de sua vida enquanto se desenvolvem outras imagens – e o que vemos são ruas, ambientes, veículos, pessoas e a chuva oblíqua.
    “Você não percebe que ele está jogando xadrez com você até ele derrubar sua rainha. Ele me humilhou. Mostrou o pior de seu caráter. Deve ter pensado que, me esmagando daquele jeito, eu ficaria acabada. Destruída. Pensasse em suicídio. E desejasse sair, o quanto antes, de sua vida. Agora eu cogitava também o risco de ser morta. Nesse meio e com essa engrenagem em franco funcionamento, isso não é tão estranho. Não havia nenhum sinal de eu estar sendo vigiada. Mas isso costuma ser o pior: quando não há sinais. O perigo é o mesmo.”
 Esses perigos, pensei, enquanto fumava e fingia estar absorvendo tranquilamente aquele tapete de bombas, podem chegar até mim.
“Ele cometeu o erro básico de deixar para trás uma aliada ofendida, no meio da estrada. Uma ave ferida.       Ressentida, arruinada. Que ele previu não pudesse mais erguer-se do chão. Não pudesse mais voar.”
   Senti um arrepio de alegria e de fascínio. Podia ver seus olhos se estreitando, transtornados pela coragem. E sua inteligência, acima do normal, assumindo o poder, superando com energia qualquer expectativa alheia quanto à sua derrota. Ficava clara sua motivação, e não poderia ser mais justa. Uma mulher traída, com a capacidade dela, com seu potencial de articulação e clareza de pensamento, com a habilidade de uma brilhante enxadrista, poderia desencadear o fim do mundo. Agora ela vinha a lume, vinha à noite e às primeiras horas do dia, vinha às trevas, vinha até mim, para lançar seu contra-ataque calculado e descomunal.



*Do romance “Teus olhos na escuridão” , de Perce Polegatto, em destaque na 61a. Revista Ponto & Vírgula - Pág. 10.











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