Todas as manhãs ele passa pela mesma esquina. Geralmente o semáforo está fechado.
Ele para a moto, a estabiliza e acelera suavemente enquanto espera o sinal abrir, para então continuar seu caminho até o trabalho.
Quase sempre no mesmo horário – tanto hora quanto minutos. Seria possível marcar a hora por sua passagem pelo local.
Seu gestual se repetia como se fosse uma gravação: parava lentamente a moto, na faixa da esquerda, colocava o pé direito no chão. Puxava, com a mão direita, a manga esquerda do casaco preto impermeável que usava, com ou sem chuva, olhava a hora, levantava os olhos e os fixava nas luzes coloridas do semáforo. Não alterava um gesto, um segundo, nada. Parecia uma máquina. Moto preta, roupa preta, luvas pretas e capacete preto. Nada variava. Nunca.
Ela, por outro lado, era o improviso na forma humana.
Morava exatamente naquela esquina. A janela de seu quarto, no primeiro andar, ficava exatamente sobre o ponto de parada dos veículos, do lado esquerdo da via.
Não tinha muita hora para acordar. Às vezes até acordava cedo, mas a preguiça a impedia de se levantar logo e continuava deitada.
Quando percebia que iria perder a hora do serviço, faltando meia hora para sair de casa, ela se levantava correndo da cama, abria a janela para ter certeza de que o dia já avançava e precisava ir trabalhar.
E, mesmo em meio à correria matinal para o banho e os minutos para se preparar e sair, notou a regularidade da moto.
Com o passar dos dias, conhecia até o barulho da moto, com seu acelerar suave sob sua janela.
E começou a prestar atenção no motociclista.
Não era um motoqueiro qualquer. A moto era maior, mais imponente. Sua postura sobre o veículo mostrava sua habilidade e familiaridade com a máquina.
Assim, achando um motivo real para se levantar um pouco mais cedo, começou a abrir a janela antes que ele chegasse no cruzamento.
Detestava as manhãs em que o sinal abria quando ele ia chegando e a moto simplesmente passava reto sob sua janela…
E ia arrumando o quarto enquanto esperava a aproximação da moto para ir até a janela ver o quadro que se repetia exatamente igual, dia após dia.
Com o tempo, começou a imaginar quem seria o rapaz misterioso, se era jovem, se era mais idoso. Não havia nada visível – nem um único centímetro de pele nem cabelo ou mesmo das vestimentas – sob o traje de motociclista. Era um enigma completo.
Sem perceber, ele passou a ocupar seu pensamento.
Criava um rosto, um sorriso, a cor dos olhos…
Depois apagava tudo – e se fosse uma mulher?
Na manhã seguinte, já o esperava ansiosamente, e analisava cada gesto, cada centímetro e concluía que era mesmo um homem.
E, assim, também sem perceber, estava se apaixonando pela ideia que fazia dele.
Um dia, sabe-se lá por qual acaso da vida – ou da sorte, ao parar a moto no sinal fechado, antes de olhar a hora, ele olhou para cima. Então a viu na moldura da janela.
E, desse dia em diante todas as manhãs ele olhava para cima, para conferir sua janela.
E ela, então, a partir desse dia, sempre o imaginava sorrindo dentro do preto capacete…
*
Crônica de Maria Alice Ferreira da Rosa, em destaque, na página 16 da 71a. Revista Ponto & Vírgula (janeiro/fevereiro/março/2025)
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