À espera- Marisa Padilha



                Era um senhor de idade, cabelo alvo, olhos castanhos e barriga de cerveja de bar com os amigos todo fim de sexta-feira. Sua simpatia era conhecida há muitos anos no bairro mais pacato e tranquilo da cidade. Entre os amigos, era o primeiro que chegava e o último a se levantar das rodadas de truco, sempre acompanhadas de boas risadas e boas porções de torresmo com as suas lourinhas geladas no antigo bar do Claudinei. Este último, já figura consolidada no bairro das laranjeiras, de vez em quando deixava o caixa com a esposa para se integrar na turma de jogo e nas conversas embriagadas dos clientes, que mais cedo se transformavam em seus amigos de verdade, dentre os quais conhecera e se tornara o quase melhor amigo do nosso protagonista. Sim, o quase.
                Havia muito tempo que Mendonça morava com a filha, sua única filha, no único condomínio de apartamentos do bairro, desde que a impiedosa doença levara sua esposa logo nos primeiros meses de vida da criança.
                Ficou casado apenas três anos e criou a filha com a ajuda da mãe, esta que por infortúnio do destino também atendeu aos chamados de Deus cedo demais para terminar de criar a neta.
                Marina sempre fora muito apegada ao pai, o qual sempre fora muito apegado a somente uma coisa: seu antigo carro.
                Era uma relação inseparável. Saía com ele de casa bem cedo direto para o trabalho na fábrica de autopeças e voltava as seis em ponto para o jantar. Mas era mesmo sentado no banco do condutor que o Mendonça se sentia em casa, sem por isso quase nunca hesitar em pegar o caminho mais longo de volta só para desfilar o velho companheiro nas avenidas da cidade. Além do prazer, ele achava que essas fugas voluntárias de rota faziam tão bem para o carro quanto pra ele as cervejas com truco e torresmo no bar do amigo. 
                Aos sábados, depois do turno matutino no trabalho, era a vez do carro ganhar o banho, a cera e a manutenção semanal: tapetes, bancos, lataria, óleo, combustível, faróis, todos em ordem. Até a Nossa Senhora em adesivo que os acompanhava colada no vidro de trás o Mendonça não se esquecia de checar.
                Muitos eram os que comentavam e conheciam sua obcecada afeição pelo automóvel, sugerindo até que o velho procurasse terapia, já que não raras vezes ouviam-no jurar que escutava o carro falar com ele e que o mesmo levava-o para direções certas quando se
encontrava perdido em estradas ou ruas desconhecidas.
                Aos domingos, o companheiro movido à gasolina não era dispensado e o trabalho bruto da semana era compensado com um relaxante e gastronômico passeio até a cidade vizinha com sua filha no tradicional almoço na casa de sua prendada irmã mais nova. E foi bem numa tarde dessas que Mendonça começou a dar início ao seu irrevogável fim.
                Naquele dia, antes de começar a se vestir, o velho instintivamente conferiu todos os seus documentos e pôs em ordem os documentos do carro também, pensando levá-los consigo durante toda a viagem dentro do porta-luvas, como era costume.
                Ao chegar à garagem e abrir o carro para permitir o embarque dele e da filha, sentiu dificuldades para liberar a porta e estranhou muito tal fato, uma vez que isso nunca acontecera. Parou, olhou para o automóvel que ele mesmo tachava de seu melhor amigo e esperou, até que pudesse tentar compreender se aquilo poderia significar algo além. Temendo por um momento estar enlouquecido, forçou a peça e sentou-se no banco, ligando a chave receosamente. Marina, no assento ao lado, já pelas incontáveis vezes que tentara, ofereceu novamente o número de telefone de um psicanalista, reafirmando a sua teoria de que o pai poderia estar ficando realmente insano.  Mendonça, pela primeira vez, guardou no bolso da camisa o cartão insistido da filha e desse mesmo modo seguiu viagem. Foi chegando próximo ao quinto quilômetro de estrada que o experiente condutor começou a sentir os efeitos já muito acumulados da idade, somados às porções e ao álcool das extravagâncias das sextas-feiras. E, não aguentando a dor ardida no peito, foi parar não se sabe como no acostamento da rodovia, já funebremente adormecido.
                Marina, a tia, o Claudinei do bar e seus muitos amigos velaram-no sob inconsolável tristeza. Só  o amigo de quatro rodas não pôde comparecer. Este era obrigado a ficar do lado de fora, como um cão à espera do dono,  fiel e ansioso pela sua volta. Mas, aos poucos, e entendendo o que se passava, escolheu terminar como o dono, pois ninguém teve a coragem de utilizá-lo novamente. Seu antigo proprietário fora o único e o último condutor digno de guiá-lo.
                Assim, a filha do Mendonça não se desfez do pupilo do falecido, deixando-o em profundo descanso, como o pai, sepultado no asfalto em frente ao condomínio de prédios onde moravam, sozinho e mudo, intacto, inerte, perdendo seu brilho e sua vitalidade ao longo dos meses, anos, até quase se confundir com o cenário da própria rua, camuflando-se em meio à poeira, às folhas caídas das árvores e dos excrementos dos desrespeitosos passarinhos, despertando o interesse nos que tentavam adivinhar sua procedência e motivo de tamanho abandono.
                Esperando assim, solitário, o dia em que não estaria mais ali, o dia em que guiaria seu dono novamente em algum lugar, em alguma estrada perdida, disposto a levá-lo de volta para casa, para a sua verdadeira casa.
                                                                                                         




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