Os filhotes minúsculos de tartaruga
avançam com medo e obsessão para o mar. O dia claro, a praia imensa. Do alto,
de lado, a qualquer momento a morte pode surgir, com os predadores, bicos,
garras. Enorme angústia no fremir das pequenas patas obcecadas com o trajeto
até a água. Lá, onde está a vida, a salvação.
Paro de pensar nessas imagens que me
perseguem em sonho ou mesmo em vigília, nas madrugadas longas. Tento fugir do
desespero dos animaizinhos. Ou do meu? A mesma cena também volta sempre. Que
têm a ver as duas? Foi há quatorze anos. Já era hora de esquecer. Desgraças são
esquecidas, apagadas? E as cicatrizes, que queimam?
Eu voltava da escola noturna. Quase
meia-noite. Minha irmã, enfermeira, fazia plantão. Eu desconfiara de uns
olhares de meu cunhado, aquele porco. Não gostava de como ele comia, pegando
tudo com as mãos, rasgando a carne com os dentes. Suava muito. Tinha o hábito
de limpar o suor com o dorso das mãos. Abri a porta. Tateei a parede buscando o
interruptor. O que encontrei foi uma mão enorme, enquanto a outra me tapava a
boca. Sujigou-me contra a parede, derrubou-me e ali, na sala escura,
violentou-me furiosamente, como um animal. A dor, a sensação de fogo nas
entranhas, seu cheiro azedo, forte de suor, seu corpo esmagando o meu,
mordendo-me o pescoço, os seios.
No dia seguinte, animal acuado, olhei
para minha irmã. Queria berrar alto, denunciar aquele desgraçado. Mas ela me
olhou com seu ar cansado, as olheiras escuras. Sua magreza parecia mais
realçada, o peito de tábua, as nádegas escorridas. Ela perguntou maquinalmente:
─ Tudo bem no colégio?
─ Sim...
As tartarugas corriam açodadamente,
rumo ao mar, a areia quente, o sol queimando. As águas, a liberdade! Acordo
transpirando, angustiada. Por que de novo o pesadelo? E por que, outra vez,
lembrava-me daquele período infeliz de minha vida? Quinze anos morando com
minha única irmã, casada com um bruto! Que fizera eu, depois daquela noite?
Nada. Ele me avisara que mataria minha irmã e a mim, se eu dissesse qualquer
coisa. E uma vez por semana, quando ela tinha plantão no hospital, à noite ele
me agarrava e me possuía de novo, duas, três vezes.
As notas na escola começaram a cair.
Pensei em morrer. A quem falar? Para onde fugir?
Durante três anos o pesadelo continuou.
Sentia-me usada, suja. Quando fiz dezoito anos, consegui emprego, com carteira
assinada e sumi de casa. Fui morar em uma pensãozinha barata, no outro lado da
cidade. Nunca mais tive notícias de minha irmã e dele, daquele bicho
peçonhento.
Quanta dificuldade, tanta luta! A
economia para fazer o Cursinho, vários empregos, o Vestibular, a Faculdade
noturna.
Quando comecei a trabalhar no Hospital
das Clínicas, formada, começaram os pesadelos. Enfermeira de alto padrão, bom
ordenado. Se a vida estava melhor agora, por que os sonhos repetitivos? Gostava
do trabalho, mas odiava os enfermeiros e os médicos, quando se insinuavam para
dormir comigo. Os homens, todos eles, uns animais.
Chamada de emergência. Atropelamento.
Um homem muito machucado. Entro no quarto. Paro estarrecida! É ele, todo
ensanguentado, mais velho, grisalho. Vontade enorme de vê-lo morrer ali, como
um cão sarnento.
─ Enfermeira! Prepare para a cirurgia.
Seu estado é grave.
Deixá-lo ali, morrendo, esvaindo-se em
sangue. Ou matá-lo, com o travesseiro, sufocá-lo. Tão fácil? Ele, inconsciente,
nem sentiria... Não. Tinha que ser morte doída, demorada. Uma injeção, um
remédio trocado? Tirar-lhe a máscara de oxigênio?
De repente, o ódio, o nojo passou. Era
aquilo, aquele monturo de gente que a fizera sofrer?
Limpou-o, preparou-o para a sala
cirúrgica. Ele não era mais ninguém. A raiva de tantos anos, verrumando,
envenenando, desaparecera. Sentiu-se livre.
À noitinha, ao sair do hospital, o céu
estava violáceo. As árvores pareciam mais belas, frescas. Aspirou o perfume bom
das flores, nos imensos canteiros redondos. Caminhou firme para o
estacionamento.
Lembrou-se dos filhotes de tartaruga,
correndo para o mar. Finalmente eles chegaram à água. Nadam rumo ao infinito,
para a liberdade, a vida.
(*)Conto
do livro Os Girassóis de Girona, Ely Vieitez Lisboa, Funpec – Editora, 2ª
Edição, 2012.
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