Água Cristalina- Shirley Stefani



    Eu o guardei como um graveto que, lentamente, desprendeu-se das minhas mãos repletas de dor e amor.
    Água. Era o que ele queria naquela secura da morte e do deserto. Cortei minha mão com a ponta de um caco de vidro verde musgo que lembrava uma fonte cristalina numa floresta tropical. Deixei que gota a gota do meu sangue e de minhas lágrimas pingassem naquela boca infantil inocente, aberta, inerte.
    O sol parecia arder mais na tentativa de aquecer meu coração.  A areia queimava-me os pés lembrando-me  o tempo da despedida.
Havia outros filhotes que, pouco a pouco, assustados, famintos e sedentos contornaram nossos corpos e, por alguns momentos,  velamos aquele corpo sequinho que jazia em meus braços  ao som do  uivo do vento e do gralhar de uma ave de rapina que por ali passava.
    Aquela coisinha miúda, sem vida, saiu de mim como um passarinho. Era com barquinho de papel que brincava nas poças d´água que se formavam em nossa aldeia depois da chuva.
    Obedeci ao chamado da areia. Endireitei os ombros e, algo  maior que eu,  levantou-me.  Foi quando avistei as pedras. Aproximei-me tímida com meu filho morto nos braços. Pedi licença. Perguntei se poderiam acolhê-lo, protegê-lo dos perigos guardá-lo pra mim.  Elas, solidárias e comovidas, abriram espaço entre si e eu o depositei vagarosamente naquele berço da natureza ainda acalentando-o como se o pusesse para dormir.
    Depois, afastei-me um pouco e elas, voltando aos seus lugares, o esconderam para sempre. 
Uma borboleta azul pousou sobre uma delas, delicadamente, e eu segui com meus passos  queimados seguidos por  alguns outros pequeninos rumo à dignidade.

*****                                                                      
(Professora e escritora - Conto inspirado em fatos reais relacionado à fuga do povo  Yazidis perseguidos pelo  E.I)



Comentários