Amor de gaveta- Marlene Bernardo Cerviglieri


Abrindo a gaveta, ali estava enroscado o papel. 
Apressadamente mas com cuidado, o desenrosquei. 
A página amarfanhada, a escrita firme.
E eis que de repente ao chão cai o anel. 
Levanto-o e a pedrinha faiscava, como se a querer dizer: 
“Enfim alguém me libertou”.
E ali naquela página dizia:
- Meu secreto e único amor.
Sim, sempre será meu único amor.
E secreto, pois não o sabes, e nunca saberás.
Sei que na tua ingenuidade, não percebestes o quanto te amo.
É um querer tão grande, que chega a doer em meu coração.
Minha adorada flor, o teu perfume me embriaga me tonteia de amor.
Teus gestos delicados me encantam cada vez mais.
E a tua voz então, é uma melodia que invade todo meu ser.
Nunca amei assim, me preocupo, pois é a primeira vez.
Quando me olhas vejo em teus olhos o mar, o céu e todo meu ser estremecem. 
Sei que não percebes o quanto te adoro, 
e no teu riso franco demonstras apenas a simpatia que me tens.
Tua educação esmerada, tua fala sempre gentil 
só servem para aumentar ainda mais este amor pó ti.
Ah, sim este anel. Comprei-o para ti, como despedida.
O aceite, por favor, pois nele vi o brilho dos teus olhos.
É apenas um regalo, que de coração te ofereço, 
em nome da amizade, que me tens.
Amo-te sim querida, e sempre será assim.
Um amor impossível, mas pleno de carinho.
De mim para você.
São Paulo, Julho de 1915.
O professor.

Fechei a página, e lágrimas rolavam em meus olhos.
Quem deixaria uma carta tão sincera cheia de amor ali enroscada?
A peça de mobília era bem antiga, e no sótão sempre esteve guardada, 
disso eu sabia há muitos anos.
Desci a escada, fui até a sala e perguntei a vovó 
de quem eram as peças guardadas no sótão, o relógio parado e tudo mais.
-  São coisas minhas não servem para mais nada.
Então quase que mecanicamente, estendi a ela a página e o anel.
Com dificuldade leu até o fim, acariciou o anel, 
e levando-o ao coração disse-me:
- Vê querida, são coisas minhas.
- Mas vovó, a carta é de quem? Você sabe do que se trata?
- Sim minha querida. Essa peça ficava no corredor da sala de meus pais. 
Naquela época tínhamos aulas em casa, eu e meu irmão. 
Tivemos um professor, que era jovem e muito bonito. 
A carta é dele sem dúvida. Sempre me trazia um poema, 
e entendi cedo todo seu amor.
Mas não poderia fazer nada, pois prometida estava ao seu avô, 
desde menina, num acordo entre famílias.
- Mas, vovó, e aí? Me conte como acabou.
- Não minha querida, nunca acabou ele foi também meu único e secreto amor. 
Nunca se casou, foi para o exterior, e eu sempre soube notícias, 
pois suas irmãs eram amigas da casa.
- Mas vovó, e esta carta?
- A única surpresa foi o anel, minha querida, pois sempre soube deste amor. 
Cartas têm várias, e todas as encontrei  escondidas em vários cantos com muita astúcia. 
Vês, menina, o amor é eterno duradouro, permanece em teu coração para sempre.
- Mas, vovó, e o teu amor pelo vovô?
- Também existe, quem diz que se ama uma só vez, está enganada.
Só que o primeiro amor nunca se esquece, permanece lá guardado para sempre. 
Não devemos guardar mágoas de amor, má só amor.
Assim terás espaço para todos os amores de tua vida, e serão tantos!
Você querida é um dos meus amores.
E com os olhinhos marejados lá se foi atender o vovô, que clamava pelo seu jornal.
- Sim querido, sim meu amor, estou indo.
As lágrimas voltaram aos meus olhos, e uma sensação tão boa tomou conta de mim.
Naquele dia, aprendi através de uma página amarfanhada, e com a ajuda da vovó, 
o que é realmente amar.
E, principalmente, sobre nossos amores nesta vida, 
aprendi que se deve dar espaço a todos os amores, e são tantos.
Tola, romântica, eu?
Não, apenas de bem com a vida.



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