Há muito tempo atrás, sempre
ao cair da tarde, pelo bocal de um bombardino, ele soprava o ar exalado da
profundeza da alma, e enchia o ar de timbres melódicos e deleitosos acordes.
A princípio, em nossa
imaginação, esforçávamos para captar todas as suas nuances sonoras que,
decompostas em nossas recordações, revíamos pálidas cenas de outrora.
Depois, ainda neste festival
harmonioso e, num suave enlevo, revivíamos prazerosamente a doce e melancólica
companhia de alguém. E como era bom!
E quando finda esta perfeita e
afinada consonância sonora, meu tio Agostinho Fernandes dava por encerrada mais
uma de suas despojadas e íntimas retretas.
Então, enquanto acordávamos
deste sonho fugaz, ele recolhia em um canto, seu metálico e mágico objeto.
E, diluídas no arrebol do
sereno adentrar da noite que vinha nos roubar o dia, ainda tentávamos
cingir-lhes as últimas vibrações sonoras.
Pacienciosamente,
esperar-lhe-íamos, pela tarde seguinte.
E assim foram muitas aquelas
audições que este desprendido tio brindava, privilegiadamente, a nós e à
vizinhança daquelas cercanias.
Vez ou outra ele “gazeava” seu
solitário e particular concerto de um instrumento só. Tinha, em razão disto,
seus particulares afazeres.
Espírito sossegado e calmo,
fala mansa, gestos lentos e comedidos, era o motorista da jardineira que fazia
o trajeto de Pirangi à Jaboticabal e vice-versa, herança deixada quando do falecimento
do seu pai.
Morando com a minha avó Maria
Tronfino, viúva do meu avô Antônio Fernandes, era vizinho do competente
pedreiro Batista Guarnieri. Este era um dos músicos da Filarmônica Sete de
Março, carinhosamente conhecida como “Furiosa” e tocava uma tuba de onde tirava
notas poderosas de som grave e solene.
Meu tio era também componente
desta sociedade musical que tinha como Maestro o irreverente Rodolfo Marconato.
Tio Agostinho se impunha nesta sua participação, como primeiro trombonista.
Casou-se com a Dirce, a filha
mais velha do Batista Guarnieri. Tiveram uma filha de nome Maria Aparecida,
conhecida como “Gugu”. Tempos depois, buscando um melhor futuro para si e para
a família, mudou-se para São Paulo, no então famoso bairro do Jaçanã.
Depois de longos anos na
Capital, meu tio aposentou-se. Mas nas muitas sendas que o destino traçara para
essa família, fizeram eles por morar em São José do Rio Preto por algum tempo
e, depois do casamento da “Gugu”, ele e a minha tia Dirce, rumaram definitivamente
para a pequena Pirangi, onde residem até os dias de hoje.
Seria até oportuno, nomear os colegas com quem meu tio convivera
em todo esse tempo, anterior e posteriormente a toda essa saga empreendida ao
longo de sua vida.
Assim, eis os seus muitos imediatos companheiros como, o Dioniso,
irmão do Maestro Rodolfo, o “Tito” Redígolo, o João “Marrom”, os irmãos, Júlio
e Pedro Gariglio, o Wiliam Cordeiro, o Mosar Machado e seu tio José Valério, o
Arnaldo Simão Alves, o Rubens Delfini conhecido como “Titinho”, Eurípedes
Ferreira, vulgo “Carbureto”, o Batista Guarnieri e ainda outros, cujos nomes,
que ora me escapam da memória, que formavam, naqueles tempos tão distantes,
esta reverente Banda pirangiense.
Homens simples que ao soprarem, simultaneamente, nos seus metálicos
instrumentos, apenas as notas exigidas na sua partitura, faziam por amalgamarem
aquela miríade de notas musicais, em sons harmônicos de suaves acordes.
Deleitávamo-nos ouvindo nas retretas e apresentações sem conta,
com os dobrados “Batista de Mello”, a valsa “Cisne Branco” e a marcha fúnebre
“Amore Surdine”, esta última, sempre tocada nas Sextas-feiras Santas e de
autoria do saudoso Professor Leonardo.
Hoje, depois do estio da vida, o corrosivo tempo, com o passar dos
anos, traz uma fatídica e inevitável cobrança e muitos daqueles músicos já não
são mais deste mundo.
Fizeram parte de uma legião de abnegados heróis que honraram seus
compromissos em levar a qualquer parte que fossem a alegria musical de um
conjunto alegre e bem orquestrado.
A meu ver, faziam das suas partituras, paletas de coloridas tintas
e de seus instrumentos, pincéis que dançavam numa tela sonora no pavilhão de
nossos ouvidos.
Embora alguns tenham se mudado para distantes plagas e outros,
pelo avançar da idade, “aposentaram” suas habilidades musicais, estas
casualidades, somadas, vieram contribuir, consequentemente, num desfalque
destes integrantes, o que concorrera para estremecer os alicerces da estrutura
fundamental da Filarmônica.
Contudo, criaturas de bom senso como “Carbureto”, Mosar Machado e
outros, não mediram esforços e muito lutaram para a sustentabilidade e o
reerguimento da Corporação.
Ao meu tio, depois de seu retorno à pequena cidade, coube a
oportunidade de continuar a mostrar seu domínio no metálico instrumento que
tanto lhe deleitava.
Todavia, a vida também veio lhe cobrar boa parte de suas energias
físicas envidadas que foram, no esforço de, em todos os anos de dedicação,
empregou-a no mister de ser, ufanamente, um bom músico.
Por este motivo, precisou se retirar sua privilegiada posição no
palco das exibições, pois que o peso da idade lhe minava as forças. Afastou-se
então, deixando um belo exemplo de dedicação e domínio na Arte Musical.
Agora, definitivamente, ficaríamos sem as “clarinadas”dos
solitários concertos ao cair da tarde e que, apenas como consolo, permanecem
albergado em nossas lembranças, pois que, desde há muito tempo atrases
tivéramos privilegiadamente, lá naquelas plagas, sempre a ouvi-las.
E a “Furiosa”? Continua lá, garbosa e perseverante, animando as
festas de Santo Antônio, as quermesses de São Benedito, levando calor
patriótico nas comemorações cívicas, evocando o orgulho de ser pirangiense em
cada aniversário da pequena cidade e, na procissão do Senhor Morto, a
oportunidade de alicerçarmos cada vez mais nossa Fé Cristã.
Hoje, todavia, os heróicos músicos da Filarmônica Sete de Março,
são outros.
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