Estaria escrito?- Patrícia Mariani Gallo Pantoni




                Nem era época para esse sol quente desse jeito... o calor era quase insuportável e não havia um lugar à sombra para estacionar o carro.
                Antes, o supermercado abarrotado, filas enormes nos caixas, agora este calor... e já estava atrasada. O jeito era deixar o carro ao sol mesmo, apesar das compras no porta-malas.
                Caminhou até o prédio, chamou o elevador. Estava demorando, mas não resolveu subir pelas escadas. Estava cansada como sempre... Sentia-se como se nunca descansasse: ora era o corpo que se esgotava, ora era a mente.
                “Acho que mais a mente do que o corpo” – pensou. Deteve, porém, na amiga que iria rever. Tantos anos e agora, quem diria, taróloga e astróloga famosa.
                - Nunca pensei que você se interessasse por esses assuntos...
                - Pois é, desde os catorze anos que eu leio a respeito e venho praticando, mas tinha vergonha de falar. Só que agora está na moda, não é?
                Tinha vindo fazer uma consulta, já que a fama da amiga vinha do fato de dizerem que ela parecia ver além das cartas, sua sensibilidade era muito grande.
                Já no quarto utilizado para as consultas, sentou-se e observava que tudo parecia mudado. Não conseguia imaginar a amiga em meio a incensos, flores e, até mesmo, certa discrição que não combinava com o que acontecia ali; afinal, ela ficava sabendo da vida de todos...
                Da amiga, conhecia bem um passado não muito distante, até se separarem pelos próprios caminhos da vida. Assim, também a amiga sabia dela apenas a melhor fase de sua vida: a infância. A partir daí, não sabia mais nada... quando, depois, as responsabilidades vieram, a gravidez inesperada, o casamento obrigado, o nascimento dos filhos... tão poucos anos que parecia séculos... não, nada disso ela conhecia com detalhes. Apenas no dia que se encontraram por acaso e as coisas foram ditas como se fossem duas estranhas: “Mas agora ela iria saber” – pensou. Quem sabe teria alguma previsão boa para fazer. Porque ela também fazia previsões e até com data marcada – diziam.
                Pronto. Depois de embaralhar as cartas num longo e silencioso ritual, estava formado o primeiro desenho colorido de cartas à sua frente.
                - Isso é para você relaxar. Você está muito nervosa. Então vamos primeiro ver o seu passado.
                “Ah, passado eu já sei... vamos ver o que virá pela frente”.
                Enquanto a amiga embaralhava pela segunda vez as cartas – para ver o lado profissional, como escolhera – ficou pensando que sentia até um pouco de medo. “Tudo parece bem calmo (enquanto não se mexe), ou, pelo menos, não se espera nenhuma surpresa. O que poderia não acontecer aí?...”
                - Você está trabalhando demais, mas não está se realizando nem profissionalmente.
                “É claro que não. Ser professora neste país e ainda ter que praticamente sustentar a família...”
                - As vendas, para seu marido, vão continuar fracas. “É... como há tanto tempo vem sendo assim. Profissional liberal, trabalhar por conta... neste país..., bem que eu digo pra ele tentar um concurso público. Melhor pingar que faltar. E ainda essa mania de usar roupas de marca, trocar de carro... querer o que não é.”
                O ritual das cartas foi se repetindo, cercando lado afetivo, financeiro, emocional, saúde, sem nenhuma novidade aparente para ela, nem para o marido, nem mesmo para os filhos. Tudo sem graça e desanimador, como vinha sendo sua vida.
                Percebeu que a amiga se entristecia cada vez que virava uma carta e não via nada de melhor do que podia ser dito. Ficava ela própria mais triste ainda, pois era sua vida que estava li e ela nem podia mexer naqueles desenhos para, quem sabe, mudar alguma coisa... “Mudar tudo seria melhor...”
                - É, amiga, você não está feliz...
                Não, não estava feliz há muito tempo. Aliás, já nem sabia o que era isso. Os anos se passaram e acabara se rendendo a uma vida frustrante. Tentava driblar a vontade crescente de abandonar tudo.
                - Mas você tem de lutar, porque, senão, nada vai mudar.
                - Lutar? Lutar como? O que preciso é de uma fórmula mágica, uma máquina do tempo, qualquer coisa parecida... E suas previsões?
                Todos vêm aqui saem com boas notícias e expectativas, pelo menos. Para mim você não tem nada?
                A amiga remexeu as cartas mais uma vez, disse-lhe algumas coisas diferentes, mas percebia-se que ela estava fazendo isso apenas como tentativa para confortá-la um pouco. Na realidade ela tentava convencer a desanimada consulente de que era preciso buscar forças dentro de si própria, pois nada mágico viria em seu auxílio, a não ser o que viesse de seu interior fortalecido.
                Conversaram alguns minutos ainda e então foi embora. Entrou no carro quente e ficou ali, cabeça encostada no volante, pensando.
                Uma onda de calor começou a envolvê-la e era como se aquele suor fosse uma expurgação de todos os momentos ruins que vivera. “Lutar buscar forças dentro de si mesma.” Mas estava tão cansada ainda...
                Lembrou-se das compras no porta-malas. “O chocolate das crianças deve ter se derretido todo.” Ah! As crianças! Sim, por elas tinha que lutar.
                Tão pequenas... nada sabiam do mundo... precisavam dela...
                Lembrou-se de que comprara macarrão. Pois hoje faria uma bela macarronada; o marido gostava tanto e, afinal, era tão bom ter alguém com quem dividir a cama! E ele também precisava dela.
                Ligou o carro, abriu os vidros e começou a andar, agora reparando nas árvores e no pôr-do-sol. Tanto tempo que nem se lembrava que existia pôr-do-sol. A natureza era bela e ela não tinha tantos motivos para ser infeliz – resolveu.
                Chegou em casa. Tudo em ordem. Logo o marido chegaria com as crianças. Guardou as comprar e foi tomar banho. Procurou uma caixa de sabonetes caros que ganhara de uma prima. Nunca usara, mas hoje a ocasião pedia. No armário, também encontrou o vidro de tranqüilizantes. Já precisou tanto deles – lembrou.
                Algum tempo depois, o marido chegou com as crianças. Como sempre, gritou na porta, perguntando pela janta. Já até sabia a resposta – que seria servida após tomarem banho.
                Os filhos correram para o banheiro. Ele estranhou o silêncio. Pensou em ligar a televisão, pois ela poderia ter-se atrasado e ainda estar no banho, já que o carro estava na garagem. Em vez disso, foi até o quarto. A luz acesa fazia brilhar o vidro de tranqüilizantes vazio jogado no chão, e que ofuscava sua vista, enquanto tentava clarear a visão e entender o que realmente significava o corpo da mulher estendido no tapete.





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