Nem
era época para esse sol quente desse jeito... o calor era quase insuportável e
não havia um lugar à sombra para estacionar o carro.
Antes,
o supermercado abarrotado, filas enormes nos caixas, agora este calor... e já
estava atrasada. O jeito era deixar o carro ao sol mesmo, apesar das compras no
porta-malas.
Caminhou
até o prédio, chamou o elevador. Estava demorando, mas não resolveu subir pelas
escadas. Estava cansada como sempre... Sentia-se como se nunca descansasse: ora
era o corpo que se esgotava, ora era a mente.
“Acho
que mais a mente do que o corpo” – pensou. Deteve, porém, na amiga que iria
rever. Tantos anos e agora, quem diria, taróloga e astróloga famosa.
-
Nunca pensei que você se interessasse por esses assuntos...
-
Pois é, desde os catorze anos que eu leio a respeito e venho praticando, mas
tinha vergonha de falar. Só que agora está na moda, não é?
Tinha
vindo fazer uma consulta, já que a fama da amiga vinha do fato de dizerem que
ela parecia ver além das cartas, sua sensibilidade era muito grande.
Já
no quarto utilizado para as consultas, sentou-se e observava que tudo parecia
mudado. Não conseguia imaginar a amiga em meio a incensos, flores e, até mesmo,
certa discrição que não combinava com o que acontecia ali; afinal, ela ficava
sabendo da vida de todos...
Da
amiga, conhecia bem um passado não muito distante, até se separarem pelos
próprios caminhos da vida. Assim, também a amiga sabia dela apenas a melhor
fase de sua vida: a infância. A partir daí, não sabia mais nada... quando,
depois, as responsabilidades vieram, a gravidez inesperada, o casamento
obrigado, o nascimento dos filhos... tão poucos anos que parecia séculos...
não, nada disso ela conhecia com detalhes. Apenas no dia que se encontraram por
acaso e as coisas foram ditas como se fossem duas estranhas: “Mas agora ela
iria saber” – pensou. Quem sabe teria alguma previsão boa para fazer. Porque
ela também fazia previsões e até com data marcada – diziam.
Pronto.
Depois de embaralhar as cartas num longo e silencioso ritual, estava formado o
primeiro desenho colorido de cartas à sua frente.
-
Isso é para você relaxar. Você está muito nervosa. Então vamos primeiro ver o
seu passado.
“Ah,
passado eu já sei... vamos ver o que virá pela frente”.
Enquanto
a amiga embaralhava pela segunda vez as cartas – para ver o lado profissional,
como escolhera – ficou pensando que sentia até um pouco de medo. “Tudo parece
bem calmo (enquanto não se mexe), ou, pelo menos, não se espera nenhuma
surpresa. O que poderia não acontecer aí?...”
-
Você está trabalhando demais, mas não está se realizando nem profissionalmente.
“É
claro que não. Ser professora neste país e ainda ter que praticamente sustentar
a família...”
-
As vendas, para seu marido, vão continuar fracas. “É... como há tanto tempo vem
sendo assim. Profissional liberal, trabalhar por conta... neste país..., bem
que eu digo pra ele tentar um concurso público. Melhor pingar que faltar. E
ainda essa mania de usar roupas de marca, trocar de carro... querer o que não
é.”
O
ritual das cartas foi se repetindo, cercando lado afetivo, financeiro,
emocional, saúde, sem nenhuma novidade aparente para ela, nem para o marido,
nem mesmo para os filhos. Tudo sem graça e desanimador, como vinha sendo sua
vida.
Percebeu
que a amiga se entristecia cada vez que virava uma carta e não via nada de
melhor do que podia ser dito. Ficava ela própria mais triste ainda, pois era
sua vida que estava li e ela nem podia mexer naqueles desenhos para, quem sabe,
mudar alguma coisa... “Mudar tudo seria melhor...”
-
É, amiga, você não está feliz...
Não,
não estava feliz há muito tempo. Aliás, já nem sabia o que era isso. Os anos se
passaram e acabara se rendendo a uma vida frustrante. Tentava driblar a vontade
crescente de abandonar tudo.
-
Mas você tem de lutar, porque, senão, nada vai mudar.
-
Lutar? Lutar como? O que preciso é de uma fórmula mágica, uma máquina do tempo,
qualquer coisa parecida... E suas previsões?
Todos
vêm aqui saem com boas notícias e expectativas, pelo menos. Para mim você não
tem nada?
A
amiga remexeu as cartas mais uma vez, disse-lhe algumas coisas diferentes, mas
percebia-se que ela estava fazendo isso apenas como tentativa para confortá-la
um pouco. Na realidade ela tentava convencer a desanimada consulente de que era
preciso buscar forças dentro de si própria, pois nada mágico viria em seu
auxílio, a não ser o que viesse de seu interior fortalecido.
Conversaram
alguns minutos ainda e então foi embora. Entrou no carro quente e ficou ali,
cabeça encostada no volante, pensando.
Uma
onda de calor começou a envolvê-la e era como se aquele suor fosse uma
expurgação de todos os momentos ruins que vivera. “Lutar buscar forças dentro
de si mesma.” Mas estava tão cansada ainda...
Lembrou-se
das compras no porta-malas. “O chocolate das crianças deve ter se derretido
todo.” Ah! As crianças! Sim, por elas tinha que lutar.
Tão
pequenas... nada sabiam do mundo... precisavam dela...
Lembrou-se
de que comprara macarrão. Pois hoje faria uma bela macarronada; o marido
gostava tanto e, afinal, era tão bom ter alguém com quem dividir a cama! E ele
também precisava dela.
Ligou
o carro, abriu os vidros e começou a andar, agora reparando nas árvores e no
pôr-do-sol. Tanto tempo que nem se lembrava que existia pôr-do-sol. A natureza
era bela e ela não tinha tantos motivos para ser infeliz – resolveu.
Chegou
em casa. Tudo em ordem. Logo o marido chegaria com as crianças. Guardou as
comprar e foi tomar banho. Procurou uma caixa de sabonetes caros que ganhara de
uma prima. Nunca usara, mas hoje a ocasião pedia. No armário, também encontrou
o vidro de tranqüilizantes. Já precisou tanto deles – lembrou.
Algum
tempo depois, o marido chegou com as crianças. Como sempre, gritou na porta,
perguntando pela janta. Já até sabia a resposta – que seria servida após
tomarem banho.
Os
filhos correram para o banheiro. Ele estranhou o silêncio. Pensou em ligar a
televisão, pois ela poderia ter-se atrasado e ainda estar no banho, já que o
carro estava na garagem. Em vez disso, foi até o quarto. A luz acesa fazia
brilhar o vidro de tranqüilizantes vazio jogado no chão, e que ofuscava sua
vista, enquanto tentava clarear a visão e entender o que realmente significava o
corpo da mulher estendido no tapete.
Comentários
Enviar um comentário