Os óculos discretos e as lentes grossas escondem um gigante que
habita uma matéria inconteste, um metro e cinquenta de altura. Os cabelos
brancos desaparecem enquanto a calvície brota. A roupa amarrotada e a barba mal
feita entoa cânticos de sofreguidão, balbuciando impropérios enquanto a alma
navega em mares revoltos de uma vida solitária. Desconhece a sorte, sempre foi
azarado. Tropeça em seus próprios passos e vez ou outra sua face encontra a
sorrateira placa de pare. Nunca foi amigo das vestes que envolvem a selva de
pedra. É um poço de ilusão. Quando empunha a sua palavra como espada, é
escorraçado. Pequeno grande homem de gênio impossível. É mestre em desnudar a
paz dos outros. Recebe o troco errado, é escolhido pelos pombos, fica
descontrolado quando derrama café na gola da camisa e por obséquio, maldiz o
motorista quando é deixado para trás. Não reclama quando o sorvete beija o
asfalto, acredita que é sinal de sorte. Não é um homem mal, acumula sofrimento,
dores antigas e feridas abertas.
Piadista nato, discute por quase nada. Gosta de ser provocado,
provoca. Não gosta de futebol, prefere dominó, mas torce para o Flamengo. Os
amigos são arredios, a sua amizade tem validade prescrita. Não fica só pois
detesta o silêncio e ama a discussão. No metrô, em poucos segundos vira amigo,
em questão de minutos, inimigo. Não aceita opinião contrária, não reconhece o
erro e não leva desaforo para casa. Corajoso, enfrenta quem não deve e quem não
pode. Apanha, reclama e promete vingança. Nunca cumpre, deixa sempre barato.
Não passa de um covarde surrado de terno e gravata. Vendedor de seguros, nunca
foi seguro de si. Acredita que a sua missão seja outra, só não sabe qual.
Duvida de tudo, até do seu potencial. Foi casado três vezes, teve seis filhos,
dois dos quais não têm tanta certeza da paternidade. Deseja um amor sincero,
puro e verdadeiro, mas sempre encontra tapas, mentiras e beijos falsos. Gosta
de quebra-cabeça, rapadura, bolo de milho e jiló. Detesta o interior, reclama
da metrópole e não vive longe dela. Confessa descaradamente a sua paixão pelo
trânsito caótico, o metrô abarrotado e a poluição industrial clássica.
Gigante de coração, é dado ao sofrimento. Sofre por pouco, deixa a
razão escorrer entre os dedos, e a vida pelo ralo. Enterra o entendimento pelo
avesso. Discute com o padre, o padeiro, o alfaiate e o gesseiro. Promete e não
cumpre, fala mais do que deve, sonha acordado. Metódico, detalhista,
precipitado, ansioso, a sua residência parece uma farmácia, remédios aos
montes. Conhece diferentes psiquiatras e acredita que a solução dos seus
problemas virá de um deles. Encontra guarida nos psicotrópicos, enfrenta os
problemas sem resolvê-los. Posterga, sucumbe, regride. Fica pior com o tempo. É
marrento, ranzinza e acredita que é superior. Julga ser distinto, elevado e
sublime. Engana a si mesmo. Prefere a mentira do que a verdade que lhe faz mal.
Esconde os seus defeitos e não faz bem feito. Transparente, resmunga, grita,
cospe no chão. Almoça sempre o mesmo arroz, feijão, carne e macarrão. O jantar
não é de príncipe, é de plebeu, pão, ovo, queijo, requeijão e suco de groselha.
Gentil é áspero, amargo e adora ser vilipendiado. Solapé continua sendo o alvo
preferido dos pombos, até que a morte os separe. Ainda tropeça em seus próprios
passos. Assim vive.
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