Gentil Solapé- Fernando de Oliveira Cláudio



Os óculos discretos e as lentes grossas escondem um gigante que habita uma matéria inconteste, um metro e cinquenta de altura. Os cabelos brancos desaparecem enquanto a calvície brota. A roupa amarrotada e a barba mal feita entoa cânticos de sofreguidão, balbuciando impropérios enquanto a alma navega em mares revoltos de uma vida solitária. Desconhece a sorte, sempre foi azarado. Tropeça em seus próprios passos e vez ou outra sua face encontra a sorrateira placa de pare. Nunca foi amigo das vestes que envolvem a selva de pedra. É um poço de ilusão. Quando empunha a sua palavra como espada, é escorraçado. Pequeno grande homem de gênio impossível. É mestre em desnudar a paz dos outros. Recebe o troco errado, é escolhido pelos pombos, fica descontrolado quando derrama café na gola da camisa e por obséquio, maldiz o motorista quando é deixado para trás. Não reclama quando o sorvete beija o asfalto, acredita que é sinal de sorte. Não é um homem mal, acumula sofrimento, dores antigas e feridas abertas.
Piadista nato, discute por quase nada. Gosta de ser provocado, provoca. Não gosta de futebol, prefere dominó, mas torce para o Flamengo. Os amigos são arredios, a sua amizade tem validade prescrita. Não fica só pois detesta o silêncio e ama a discussão. No metrô, em poucos segundos vira amigo, em questão de minutos, inimigo. Não aceita opinião contrária, não reconhece o erro e não leva desaforo para casa. Corajoso, enfrenta quem não deve e quem não pode. Apanha, reclama e promete vingança. Nunca cumpre, deixa sempre barato. Não passa de um covarde surrado de terno e gravata. Vendedor de seguros, nunca foi seguro de si. Acredita que a sua missão seja outra, só não sabe qual. Duvida de tudo, até do seu potencial. Foi casado três vezes, teve seis filhos, dois dos quais não têm tanta certeza da paternidade. Deseja um amor sincero, puro e verdadeiro, mas sempre encontra tapas, mentiras e beijos falsos. Gosta de quebra-cabeça, rapadura, bolo de milho e jiló. Detesta o interior, reclama da metrópole e não vive longe dela. Confessa descaradamente a sua paixão pelo trânsito caótico, o metrô abarrotado e a poluição industrial clássica.

Gigante de coração, é dado ao sofrimento. Sofre por pouco, deixa a razão escorrer entre os dedos, e a vida pelo ralo. Enterra o entendimento pelo avesso. Discute com o padre, o padeiro, o alfaiate e o gesseiro. Promete e não cumpre, fala mais do que deve, sonha acordado. Metódico, detalhista, precipitado, ansioso, a sua residência parece uma farmácia, remédios aos montes. Conhece diferentes psiquiatras e acredita que a solução dos seus problemas virá de um deles. Encontra guarida nos psicotrópicos, enfrenta os problemas sem resolvê-los. Posterga, sucumbe, regride. Fica pior com o tempo. É marrento, ranzinza e acredita que é superior. Julga ser distinto, elevado e sublime. Engana a si mesmo. Prefere a mentira do que a verdade que lhe faz mal. Esconde os seus defeitos e não faz bem feito. Transparente, resmunga, grita, cospe no chão. Almoça sempre o mesmo arroz, feijão, carne e macarrão. O jantar não é de príncipe, é de plebeu, pão, ovo, queijo, requeijão e suco de groselha. Gentil é áspero, amargo e adora ser vilipendiado. Solapé continua sendo o alvo preferido dos pombos, até que a morte os separe. Ainda tropeça em seus próprios passos. Assim vive.



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