J. Barsanulfo Nery


Pecado original

Do fundo das catacumbas,
ela, o demo bastardo,
surge e se faz sagrada.
Nas batidas das zabumbas,
no paraíso, além-mar,
a serpente, venerada.
Esse som vem abafar,
dessa gente, o gemido,
por ter, um dia, engolido,
a maçã, o alimento,
das trevas no céu de Alá.
Surge assim o tormento
do desejo e da punição.
Entre fascínio e lamento,
Eva descobre Adão.
O que foi sempre será.
No cálice do vilão
um precioso maná
faz o sangue circular
no ritmo concebido,
sem que seja percebido
pelas traves da visão.
No silêncio do Criador,
o fantasma do horror
muda toda a acepção
da liberdade de ação.
Assim no grande altar,
põem-se a entoar
o cântico de louvor,
em solo, também em coro,
na barganha do Senhor
por um bezerro de ouro.
No deserto do sermão
dá-se início ao martírio
de viver-se no delírio
que chacina o lazer.
Gozo vira sofrimento,
e sofrimento, prazer.
Destarte nas predições
sem religiosidade,
dá-se a falsa liberdade
que arrebata corações.
Surgem os “bentos” refrões:
O amor vem do Eterno,
o ódio vem do inferno,
na cantiga da vida,
sem vida, a embalar
a razão esquecida
para o tempo confinar.

-------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------

Premonições

Um pouco exausto da noite sem dormir porque a festa do meu casamento se estendeu até às 5h manhã e, logo às 7h um dos meus amigos e diretores da minha empresa já me apanhava para levar ao aeroporto.
Ela, toda radiante, parecia que tinha acabado de se levantar, exalava seu perfume natural das rosas do prado. 
Confesso, estava em êxtase. Mas tinha todo o trajeto até as Ilhas da Polinésia para recompor o sono. 
Achava que jamais iria abrir mão da minha vida de solteiro. Mas, ano passado em Aspen no Colorado, não pude resistir. 
Naquelas colinas de gelo estava a minha branca açucena  quase a se misturar com os flocos de neve se não fosse o seu aroma. E, assim, eu a colhi no jardim da vida.
No retorno da minha lua de mel, fui recepcionado na empresa com o belo protótipo de um planador, que certamente vai superar os planadores poloneses e será um sucesso de vendas. 
Os elogios me assustam. Comentam que sou um grande empreendedor, porém, sou apenas um homem simples e amo o que faço. 
Minha querida mamãe, devota da Virgem Maria e noveneira do Divino Pai Eterno, ensinou-me desde criança a rezar antes de dormir e quando não faço, tenho insônia. 
Nesses momentos de orações, tenho tido algumas visões, quatro para ser sincero. Minha mãe diz serem premonições, só numa delas, teve o cuidado de falar-me que era um pesadelo, no entanto a fé livraria minha alma dessa aflição. 
Elas são como reais e se dão em segundos, a impressão é de uma vida toda. Todos sabem que mãe não quer que nada de mal aconteça com seus filhos, porque ao contar eu pude sentir a tristeza no coração dela.
A primeira dessas visões, eu me achava no Cristo Redentor no morro do Corcovado, Rio de Janeiro, uma das sete maravilhas do mundo. 
Era noite, lá de cima eu contemplava a cidade do Rio de Janeiro quando tocou no meu ombro direito um senhor de feição alemã, idade avançada, podia se ver pela sua barba de Papai Noel, os cabelos anelados e longos, branco - nuvem. 
Chamou-me pelo meu apelido de infância, que meu papai não me deixa esquecer e com uma voz de radialista disse que a estrada da vida tem muitas encruzilhadas, por isso ela é feita de escolhas.  Cada escolha tem suas peculiaridades, duração e lições, uma vez escolhido o caminho, não haverá volta, o melhor é seguir em frente, enfrentar os obstáculos para chegar triunfante ao lugar de destino. 
No começo da conversa ele me olhava de soslaio, depois, virou-se de frente e terminou dizendo:
- Meu filho, às vezes, na vida pode ter vários cruzamentos, bifurcações ou, apenas, um desses acontecimentos, portanto, fique atento. A atenção é fundamental, lance que poucos conseguem ter, devido a gama de pequenas coisas que nos rodeiam com valores superestimados. 
Achei aquele homem sábio, com ares de anjo, quis falar mais com ele, mas, desapareceu num piscar de olhos. A aparição acabou, fiquei sem entender nada, porém feliz. 
Por muitos dias esse evento não saia da minha mente, acho que tinha os meus doze anos de idade. Contei para alguns dos meus amiguinhos da escola, acredito, fui mal interpretado, porque teve um, o pé grande, que pediu para eu não falar disso com mais ninguém porque se chegasse aos ouvidos do Padre Diretor, poderia ser excomungado.
A segunda visão que tive foi essa do casamento e eu era um homem abastado das finanças e minha mãe sem sombra de dúvida disse ser uma premonição. Deus estava me preparando e quando acontecesse eu não poderia esquecer-me das pessoas pobres, de dificuldades nós conhecemos bem. 
Muito sensato o seu conselho, porém não enxergava nenhuma possibilidade que desse prumo a tal fato. No entanto, mãe é mãe, devemos acatar o ditame que vem do coração delas. E mãe igual a minha é como encontrar um lírio branco no vale inteiro. 
Esse conforto ascendeu o desejo de continuar na luta, arregaçando as mangas da camisa, porque, naquela época e na minha cidadezinha, quatorze anos já passava do tempo de ajudar no sustento da família.  
Aos dezessete anos, participava do aniversário de minha prima e como de costume dava-se uma festa na casa da pessoa e havia um baile onde todos se divertiam. 
Os homens colocavam chapéu na cabeça do outro para continuar a dança com o seu par, depois as mulheres, por sua vez, lançavam mão de um lenço e pondo no pescoço da outra para dançar com quem estava com ela. Não esperei terminar a festa e partir para casa me deitar. Dando cabo a rotina, fui fazer minha oração quando adveio a terceira visão. 
Nesse momento de transe me vi saindo de uma fábrica vestido num macacão cinza, cansado e correndo para pegar a condução que levava os trabalhadores para a estação de trem. Após 1h30 cheguei a meu lar,uma pequena construção, acabada, sem pintura. Meus filhos vierem ao meu encontro, quando abraçávamos, ouvi minha esposa perguntar:
- Trouxe o pagamento? A conta de luz está vencida.
O pagamento, ela quis dizer o meu salário do mês. Isso me aborreceu, mesmo assim respondi que sim, então ela sorriu e aquele monumento de mulher que o mel não é simplesmente só o sabor dos seus lábios, também a cor dos seus olhos, caminhou na minha direção e beijou-me. 
A mesa do jantar estava posta, uma comida simples, mas saborosa, feita com amor. Naquele instante a felicidade tomava conta de mim, além de conseguir prover o sustento da família, eles eram amáveis e cheios de saúde.
Dia seguinte, antes do café da manhã, contei para mamãe, na expectativa de ser uma profecia, foi quando ela me disse que por ter vindo tarde da festa e ingerido um pouco de líquido que contém álcool tive um pesadelo. 
- Não há de ser nada meu filho. Só um pesadelo. Você é um homem de sorte – disse ela.
Concordei com minha confidente e não mais me preocupei com o acaso. Continuei na lida e na esperança de me mudar para cidade grande e concluir um curso técnico, mais tarde o superior.
Na casa dos meus pais só havia encontros da igreja e eu ia completar a maioridade, então ganhei a concordância deles para fazer uma festa com “comes e bebes”, também um arrasta pé com moderação. 
Meu aniversário caiu num sábado, trabalhei pela manhã no cumprimento do dever da lei trabalhista, e a tarde fui ao mercado comprar o restante do necessário para a festança. 
Fui para casa, estava ansioso. Tomei um banho e ao me trocar senti uma leve tontura, sentei-me na cama e com meus olhos interiores vi uma placa luminosa com seis números que piscavam velozmente, depois ia ficando mais lento até parar, dai sumiam todos os números e aparecia um, piscava e sumia, vinha o outro e assim procedia até o último. Repetiu esse processo por três vezes seguidas, de forma que os números ficaram nitidamente grafados na minha mente. 
O festejo estava marcado às 20h, a arrumação tinha começado e aqueles números martelavam a minha cabeça. Logo conclui que eram os números da loteria que corria naquele sábado. 
Olhei para o relógio marcava 17h15, pensei no tempo que levaria até loteria, meia hora. Ir, voltar, os preparativos da festa, não me parecia ajustado, os convidados poderiam chegar primeiros que eu. Pensei no ditado popular: “O que é do homem o bicho não come”. Peguei uma caneta e escrevi os números para jogar na segunda.  
No dia prometido fui à Casa Lotérica jogar os benditos números. Para minha surpresa o valor do prêmio estava acumulado, ninguém ganhara no sábado, se houvesse ganhador o prêmio seria de cinquenta e oito milhões. Os números sorteados eram exatamente os meus. Minhas pernas tremeram, minha face amarelou e comecei a suar frio, uma senhora do lado perguntou:
- Filho, você esta com jeito de quem está passando mal.
- Já passou. Estou bem – respondi.
  Disse a mim mesmo, “Calma..., só aumentou o valor”
Joguei aqueles números e outros para garantir. E os dias de semana mais longos da minha vida foram esses: segunda, terça e quarta feira. Ora imaginava eu fazendo um monte de coisas com os futuros milhões, ora pensando que perdera o trem.
Por  fim chegou a quarta feira. Os números sorteados foram outros. Caí numa profunda tristeza por uma semana. Nunca tive coragem de contar para a mulher que me deu a luz o ocorrido.
Passado mais de vinte anos, contei para meu pai que esqueceu meu nome, porque ainda me chama sempre pelo apelido carinhoso dado por ele. O velho no seu jeito matuto me falou com sabedoria:
- Menino pequeno, você cometeu um erro de atenção, não é comum as pessoas terem visões, inda mais números de loteria. Você não ouviu de ninguém, você sentiu e viu pessoalmente. O incomum deve ser observado, raciocinado e valorizado.  Você, meu pequeno, ficou no comum. 
Agora estou na espreita, aguardando por uma nova encruzilhada ou bifurcação na minha modesta vida.

Comentários