A loja ainda não estava cheia quando a mulher entrou. Seriam 9 horas? A parte dos fundos onde as prateleiras eram mais vazias estava às escuras. Acenderiam ainda a parte menos nobre quando fosse dia alto? O sol batia na entrada, cálido e bom, mas alcançava apenas a primeira vitrine, estocada para frente; no restante, apenas uma luz desfalecida iluminava o balcão. A mulher entrou com lentidão de passos, colocou a sacola gorda por sobre o primeiro aparador. Um suspiro aquele aizinho baixo? As moças conversavam lá no fundo, tão sonoras! A mulher teve tempo de olhar à volta, conferir os broches de pedra inferior, todos dispostos por tamanho abaixo do aparador e protegidos por vidro sem cintilação. O mais bonito era a forma de uma borboleta gigante, as asas pesadas de tanto vidrilho, impossível voar assim! Riu-se para dentro. Como se pode levantar voo com o peso de tanto enfeite? Lembrou-se da revoada dos pardais às seis da tarde, todos voltando para os galhos cheios, a alegria da barulhada, a timidez das asas, tão pequenas e no entanto, tão úteis! O corpinho do pardal alongando-se nas asas, podia-se dizer que a estrutura toda era todo o voo livre, planando e parando, parando e planando. Com as borboletas, seria diferente?
- Pois não. Era a moça do fundo que viera, atenciosa.
- Bom dia. A voz saiu no susto, as borboletas e pardais ainda revoavam no espaço da mente.
- Bom dia. Pois não?
- É aqui que compram vestidos de noivas?
- Vendemos vestidos seminovos e também compramos alguns. Os que valem a pena.
A mulher enfiou a mão direita na sacola. Retirou uma nuvem de seda que cresceu lânguida por sobre o balcão. Esticou ao máximo a saia etérea e esperou.
- Quanto tempo tem este vestido?
- Depende. Demorei sete anos para fazer, ia usar no sábado dia 30.
- Sete anos? Está fora de moda, então. E foi abrindo com pressa aquela massa de gás para depois levantá-la por inteiro. A mulher observava atenta cada músculo do rosto da atendente, não para saber se compraria o vestido, mas para perceber a admiração pela feitura do trabalho.
- Está bem feito. Quem fez?
- Eu.
A mulher sorriu um tanto de lado, satisfeita.
- É costureira profissional?
Não, explicou. Era interessada, sabia costurar alguma coisinha, aprendera com a tia Tita a chulear, aviar, arrematar, e depois, bem mais tarde aprendera com muito custo a cortar e montar vestidos. Esse vestido foi feito e refeito, sete anos e mais de quatro remodelagens...
A atendente reparou então nos bordados da armação da frente. Pequenas aplicações de renda chantilly estavam entremeadas a uma fluida base de voil, imperceptíveis ao primeiro olhar, mas
que davam um aspecto enrugado e arrevesado ao acabamento do colo como se fossem pequenas nebulosas a habitar um céu alvo. A atendente colou os olhos para melhor definir o efeito sulforoso do busto.
- Ficou muito interessante esta aplicação. Nunca vi igual.
- Meu noivo não gostou do vestido sem enfeite; precisei aplicar uma a uma as rendas menores, me levou mais de um ano para terminar a frente.
- Seu noivo viu o vestido antes do casamento?
- Via sempre que eu terminava uma fase. Dava palpites, tinha bom gosto...
A atendente preferia não perguntar sobre a vida dos clientes, neste caso, sentiu-se mais curiosa.
- E vocês não se casaram?
- No dia do casamento, quando me viu pronta, não quis mais.
Outras atendentes já haviam se aproximado do balcão. Silenciosas. Onde a barulhada das conversas lá ao fundo na semi-escuridão? Onde o alegre movimento dos pardais e suas asas pequenas? Apenas a borboleta de brilhos permanecia como estava, protegida por vidros.
- Era um homem difícil, mas belo. Digo era, porque não morreu. De modo que se não o vejo mais é como se tivesse morrido, mas sem velório e sem caixão.
As moças assentiram com a cabeça. A loja agora era um cubículo abafado, pouca luz.
- Mas vejo aqui na barra que este vestido foi usado. E foi debulhando a névoa baixa até que encontrou uma nódoa pequena de um marrom-acinzentado, bem na parte de trás como se ali houvesse uma cauda que não se via, mas que arrastasse no chão.
- Aqui, está vendo?
- Estou. Chovia naquele dia. Me vesti como vesti esse vestido muitas vezes e desta vez, calcei os sapatos. Chovia tanto! Meu noivo me ligou e disse que iria passar para me ver antes de seguir para a igreja. Eu não quis que ele saísse do carro na chuva quando parasse em frente à casa, estava tão bonito vestido de terno azul! Falei que não descesse, eu ficaria à frente da casa, já com o buquê na mão. Ao telefone, ele gritou: Não mande em mim, nem no primeiro dia e nunca nos outros também! Assim era ele, um homem áspero, mas um homem bom. Com calma fui explicando que não havia necessidade de tomar chuva, de molhar os cabelos tão bem penteados. Parece que eu adivinhava.
- Adivinhava o que?
- Que naquele dia ele amanhecera bem mais nervoso do que sempre; não seria bom que ele estivesse perto de mim a conferir tão de perto o vestido pronto; o dia do casamento mexe com a gente, não? Precisou da mãe pegar o telefone e o convencer que da porta da frente ele me veria pronta: vestido, sapato, véu e buquê. Ele sempre ouvia minha mãe; não sei porque aconteceu.
- E ele te viu pronta?
- Acho que deve ser por isso que sujei o vestido. Estava puríssimo. Mas quando ele passou e não saiu do carro, a chuva estava mais forte. Dizem que é sorte casar em dia de chuva?
- Sol com chuva, alguém falou baixinho.
Não tinha sol, estava até um pouco frio. O carro encostou em frente à nossa casa, não vi quem estava dirigindo, vi apenas através da janela do carro seu rosto barbeado, estava lustroso onde havia mais músculos, foi o que mais notei.
- E sujou o vestido assim? De longe e sem sair do lugar?
- Foi isso que aconteceu. Ele começou a fazer sinais com a mão direita, acenando para que eu me aproximasse. Que chuva mais fria! Me lembro que minha mãe segurou meu braço para impedir que eu fosse. Não houve jeito, as mãos de minha mãe são tão fracas! Num pequeno empurrão, coisa de nada, eu já tinha avançado o pátio, descido os três degraus e estava batendo na janela do vidro do carro. Foi nessa hora que o vestido encharcou.
- Só o vestido?
- O cabelo também murchou, estava preso em coque, o véu é leve, está vendo? não segurou.
- Ele ficou satisfeito?
- Parece que ficou. Digo parece, porque depois... Mandou-me entrar, nenhum comentário feliz sobre mim, ele já conhecia o vestido, por sete anos falamos dele.
Minha mãe arrumou-me como pode, meu coração não se importou com essas coisas, seguimos para a igreja pouco tempo depois. Esperei do lado de fora da igreja, meia hora? quarenta minutos? chovia!! O padre veio falar comigo. Ele nunca apareceu.
-Temos sempre as histórias deste tipo aqui.
A atendente estava mais amolecida. As outras ao redor, silentes.
- Então você quer vender o vestido...
- Não quero guardá-lo mais. Sete anos ocupando meu armário.
Todas as outras se curvaram sobre a fluidez do pano.
A mulher abaixou os olhos e fitou novamente os adereços de brilho por dentro do vidro. Um arzinho de frio bateu de súbito. Observava uns grampos com aplicações de flores, miúdas, falsíssimas.
Por fim, a voz italianada da atendente.
- Dou 100 pelo vestido.
A mulher tirou depressa o olhar das flores falsas.
- É muito pouco! Gastei tudo o que pude guardar nestas rendas francesas...
- Mas é um vestido usado.
- Nunca usei. Não pude.
- Entendo seu problema, mas é um vestido usado, precisamos mandar lavar, quem sabe até mudar alguma coisa para que pareça novo... Tudo custa.
A mulher permanecia em um estado amorfo. Olhou à roda, duas mulheres gordotas tinham acabado de entrar, uma das atendentes que havia se encostado ao balcão alcançou-as, amável. A loja agora tinha mais luz, alguém teria acendido a parte de trás?
- Aceito.
Agora era uma voz mais trêmula que saia da boca da mulher.
- Não posso ficar com o vestido.
A atendente então retirou um talão de notas da gaveta próxima, perguntou seu nome.
- Semíramis de Alvarenga. Eu seria Semíramis de Alvarenga Costa.
- A atendente caprichou a feitura da escrita do Alvarenga, arredondando com intenção a letra g.
- Telefone?
-Prefiro não dar, não vou ficar na cidade, hoje mesmo pego qualquer ônibus que saia ao meio dia.
Abriu a mão para receber a única nota de 100. Enfiou-a sem cuidado para dentro da bolsa.
- Um momento, antes de levar o vestido, eu poderia vê-lo mais uma vez?
A atendente não respondeu e foi rapidamente para o fundo da loja, agora sim, clara.
A mulher alisou os panos, primeiramente devagar para depois retirar as pregas, passando os dedos por entre as fibras. Uma borboleta com asas gigantes.... O busto é a cabeça da borboleta, pensou de súbito, a saia, as asas leves, uma liberdade deve ser sem brilho. Olhou à sua volta; as gordotas ainda falavam com excitação, as outras atendentes pareciam alegres comentando coisas inaudíveis. Ali para ela, tudo era de um silêncio etéreo, pacificado. Enfiou a mão no bolso do casaco e retirou dali um minúsculo envelope pardo. Do outro bolso, podia-se ver que retirava um alfinete simples.
Segundos depois, ela entregava o vestido branco, olhou-o longamente pela última vez e comentou:
- Eu deveria ter fechado mais o busto. Saiu apressada, não olhou mais nada.
Nem cinco minutos após, houve a confusão de gritaria na esquina. As atendentes largaram tudo o que seguravam, ganharam a calçada.
- O que aconteceu?
O primeiro que vinha pintou rapidamente a cena passada; o ar da manhã ainda rescendia a asfalto raspado.
- A mulher parecia doida varrida ou cega de tudo, ficou na frente do carro, coitada, morreu na hora, está lá coberta com um pano branco... Nova, mas não tão nova...
- Cidade grande, todo dia uma tragédia... quem será?
Voltaram todas às atividades, em segundos, a vida era novamente os brocados, os tules, os espartilhos, a loja agora plena, debaixo de uma luz amarelada.
A atendente havia deixado o vestido por sobre o balcão, na pressa fora atender a casualidade de fora. Na horinha que fora pendurá-lo no cabide, achou preso à saia o envelopinho pardo. Tão minúsculo! Abriu-o rapidamente. Lá dentro, uma aliança dourada, grossa. Tinha inscrito por dentro, com folga, Armando. A letra A desenhada tinha uma perna longa e derribada, como se descambasse para um precipício imaginado.
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