Opção pelo abismo (*)ElyVieitez Lisboa


Amanheci máquina, sem explicação plausível. Tento lembrar se a metamorfose foi lenta ou repentina. Não sei. Ela apenas foi. Aconteceu. Houve uma época, quando eu era muito humana, os sonhos emanavam do meu cerne, fluíam como perfume em frasco aberto. O corpo, a carne, tudo era uma lira sensível a qualquer doce aura, vibrando as cordas da emoção. E o coração batia desenfreado, os olhos abriam a possíveis horizontes mágicos, enchia os pulmões de desejos e sensações profundas. Inebriava.Eu sabia então ousar. Um dia me apaixonei. De repente, todo o mundo floriu em exageros de pétalas coloridas, o perfume da vida, das possibilidades entontecia. Era uma atração pelo abismo e pelo fogo. A criatura amada era terrena ou eu, demiurgo, formei-a plasmada de poder, desejo, mãos mágicas, cérebro divino? Havia uma boca bela, com dentes claros, que atraía, chamava, prometia. O inferno de Empédocles: se resistisse ao vulcão, frustrava-me, era infeliz. Se me atirasse a ele, experimentaria a volúpia e a morte.       
                Acho que foi aí que principiei a coisificar-me. Não ousei. Abdiquei-me. Todo falimento tem seu preço. Mas eu não o sabia tão grande. Ele olhou-me com olhos de labirinto e disse: - Vem! Era a salvação. Mas só se sabe o preço do erro depois da falha cometida. Precisava, no entanto, ser tão grande o castigo?
Depois da recusa, senti as primeiras modificações. Um dia, um pássaro ferido caiu a meus pés e não chorei. Vi flores pelo caminho, ignorei-as. As mãos, os pés foram ficando pesados, âncoras. Com tenazes de aço, a vida foi me aprisionando e a lira sutil trocada por um arcabouço de ferro, prisão. O coração debateu-se um pouco, mas parou. Tive uma leve sensação tentando reumanizar-me. Inútil. O processo é irreversível, a inexorabilidade da reificação. Neste momento estou tentando, ao menos, deixar um relato, para que outros humanos, que deterioraram, escapem. Com dedos pesados, lerdos, teclo o computador. De repente, nem os dedos se movem. Robotizei-me.
É o próprio computador que, após o último ponto, completa para mim, espécie de cortesia de máquina para máquina. No final de minha narrativa, digita: arquivo deletado.



(*)Conto do livro Os Girassóis de Girona)




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