Pigmalião
O cinzel esculpe o mármore, que se
entrega com doçura. A intenção vem antes, pré-concebida, ou aos poucos é a
imagem que se impõe? Os cabelos meio revoltosos não são pedra; têm a leveza de
plumas. A testa ampla se alarga, com tênues sinais, como se pensativa
estivesse. Após as bastas sobrancelhas, em doce arqueado, rasgam-se os olhos.
São amplos e a brancura marmórea sugere laivos esverdeados, profundezas. A
pupila está viva. Após o nariz reto, perfeito, para e fica a idealizar a boca,
os lábios grossos, entreabertos. Não há pressa. Há mais gozo entre a
idealização e o fazer, que após o ato pronto. Alisa o mármore, onde será a
boca; os dedos acariciam, esquecidos do cinzel.
Só no dia seguinte, feitos os lábios,
cuidou do queixo. Arredondado, proeminente, arrogante. Ela ficou extasiada
diante do rosto quase pronto. De onde vinha tanta beleza? Da face larga, dos
zigomas salientes? Jamais sentira isso, diante de obra sua. Não eram suas mãos
que cinzelavam. Uma força interna guiava-a como se a figura estivesse no seu
interior e quisesse nascer. Ela ia se desprendendo, através da cinzelagem. Uma
libertação. Ele estava dentro dela e nascia. E por que o alvoroço, o tremor, o
calor tomando-a, só a olhar aquele rosto, o seu rosto, o rosto dele, do amado
que estava por vir?
Após a modelagem do ombro e a parte do
tronco, teve medo. Ou foi para espaçar mais o gozo, o prazer da realização, da
chegada? Levou dias ensaiando iniciar as mãos. Meu Deus, as mãos de um homem!
Elas dizem tudo, exprimem mais a alma que os próprios olhos. Conquistam,
acariciam, prendem, subjugam, seduzem. São portos, tenazes, instrumentos de
carícias, arroubos. Ela passou dias e dias desenhando, delineando, em uma
cinzeladura milimétrica, quase um ritual.
─ Meu doce amado! Onde estás? De onde
vens? Por que teimas tanto em vir, emergir de regiões abissais?
Estarei louca, conversando com ele? Mas
seus olhos, o meio sorriso, o ar sedutor... Ele me atrai e me induz a
falar-lhe. As mãos parecem vivas, prontas para enlaçar-lhe a cintura, puxando-a
para si. Cobriu a escultura e saiu. Precisava de ar, de céu, de muita
claridade. Passava dias e dias no ateliê e pensava renitentemente em retomar o
trabalho, com obsessão.
Foi no sétimo dia que notou. Sempre que
deixava a estátua, no dia seguinte, ela estava mais perfeita. As linhas se
harmonizavam, eternizavam-se no mármore. Algo, alguma coisa aperfeiçoava o
feito na véspera.
Modelou as pernas rijas, roliças,
musculosas. Podiam-se ver as veias delineadas. Os pés eram dois pedestais
mistos de elegância e força. Encantava-se cada vez mais com ele. Olhou para o
vago entre a confluência das coxas e teve medo. Lá estava a pedra bruta,
intocada. Como modelar-lhe o sexo? Ele era o símbolo maior, objeto de desejo.
Cobriu a estátua e fugiu.
Três dias depois voltou. Ele sorriu
para ela, convidando? Era um queixume? Reprimenda por sua fraqueza? O aço do
cinzel queimava -lhe as mãos. Então ousou. Cuidadosamente, com infinita
ternura, foi moldando o sexo. Mal respirava, tinha o coração acelerado e as
têmporas úmidas.
Quando terminou, olhou-o maravilhada,
íntima, cúmplice. Ajoelhou e beijou o pênis, que não estava adormecido,
marmoreamente rígido, mas tépido, vivo. Tomada de grande alegria, ela
levantou-se, afastou-se e viu sua obra completa.
─ Parla!
Gritou ela, tocando-a. Rindo, chorando, murmurava quase uma prece: Vive, vive
para mim!
À noite, finalmente, conseguiu
acalmar-se. A casa era toda penumbra e seu quarto, ao lado do ateliê, estava em
silêncio. Ela ficou nua, escovou os cabelos, perfumou-se, deitou-se. Os olhos
lúcidos, na semiescuridão, eram faróis à espera. Quanto tempo passou em vigília?
Aos poucos o êxtase diminuiu, veio
vindo uma paz, como um prêmio. Cerrou os olhos. Nem percebeu quando ele se
deitou ao seu lado, abraçou-a, envolvendo-a em um abraço forte, morno. Os dois
corpos eram um só sobre o alvo lençol.
Conto premiado no Concurso EstadualProjeto Mapa Cultural Paulista/98, promovido pela Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo.
(*)
Do livro Os Girassóis de Girona, 2ª Edição.
***
Na Travessa das Hortênsias, n° 13
Nome engraçado para a cidade. Paraíso.
Muitas vezes pensava por que assim chamada a cidadezinha, porém nunca
perguntara a razão. Até hoje não sei. E nome das ruas? Mocoquinha, rua dos
Carros, travessa das Hortênsias. Era esta última o meu ponto diário. O que me
atraía naquela casa? As duas mulheres, os doces ou aquele jardim esquisito?
No Paraíso a terra é branca, areia só.
Depois da chuva, a travessa parecia uma praia, lisa de fazer gosto ─ como se
fosse cimentada. Na casa n° 13 havia hortênsias, muitas azul-arroxeadas com
folhas verde-vivo, cheias de nervura. Salpicadas, aqui e acolá, magriças,
surgiam papoulas balançando ao vento as cabeças frágeis, cor de sangue. E as dálias.
De várias cores. Todas cretinazinhas, indecentes de redondas, regularzinhas,
impecáveis.
Eu sempre dava um jeito de levar meus
companheiros lá. A areia era melhor para jogar triângulo e a travessa, uma
quietude. Mas havia outra razão... eu jogava com um olho no brinquedo e outro
nas janelas eternamente fechadas. Não precisava esperar muito e dona Cleusa aparecia.
Vinha com sua magreza chupada até a cancela e ficava nos olhando. Logo eu
arrumava uma desculpa ─ estava cansado, não queria jogar mais ─ e despedia meus
amigos.
“Você quer entrar, Paulinho?...” A voz
fraca, os lábios finos sob o nariz pontudo. Eu negaceava um pouco e sentia que
não devia ir. Não aconteceria nada. Seria como das outras vezes e no fim
haveria doces. Por que então eu me sentia sempre perturbado, antes de começar a
coisa? O coração acelerado, palavras de minha mãe vindo-me à cabeça: “Não quero
ver você na casa daquelas solteironas loucas!”. Eu entrava.
Lá de dentro vinha um bafo úmido, a
casa sempre meio assombrada, quase na penumbra. Grossas cortinas rendadas,
brancas, engomadíssimas. Cadeiras grandes, de vime (pedaços arrebentados, com
pequenas línguas para o ar), almofadas bordadas, meio sebentas.
Dona Cleusa sentava-se comigo na sala.
As coxas magras, as pernas finas formavam quase um ângulo reto. Os olhos de
bordas avermelhadas, sapirocas. “Sente aí, Paulinho”. Silêncio. As mãos
ossudas, unhas amareladas, esgravatando o crochê da mesa. Eu passava os olhos
pelos enfeites das paredes; um pássaro de louça, alçando voo; um quadro de
santo: “Sagrado Coração de Jesus, tende piedade de nós!”. Retrato de um casal
antigo, caras encovadas, olhos brilhantes. Como os de dona Cleusa, que não
desviavam do meu rosto. “Venha ver meus retratos, venha!” Puxava-me para o
quarto. A cama rangia quando a gente se sentava. Ela pegava o álbum velho, com
capa de madeira e flores de metal. Sentava-se muito perto de mim. Sentia as
coxas duras como pedra. “Olhe os retratos... Aqui, está vendo? Eu tinha
quatorze anos! Não era bonita? O vestido de renda bege... Este é o tio José.
Viúvo; quis casar comigo...” E a galeria desfilava, sempre com as mesmas
personagens. Depois ela fechava o álbum e me perguntava, como se eu nunca os tivesse
visto antes: “Gostou, Paulinho? Não são lindos?” E me alisava a perna.
“Perninhas grossas... Você é gordinho e crescido; só tem nove anos, não é?” E
as carícias continuavam, pegajosas, sem fim.
Pressentindo a visita, dona Gena vinha
lá do quintal. Seca como a irmã, porém mais alta. Ela parecia enorme. Cabelos
lisos, quase brancos. Olhava duro para dona Cleusa. “Amolando de novo o menino?
Você não tem vergonha?!”
Era a segunda etapa. Logo viria o fim,
a razão máxima daquelas visitas que eu detestava, mas não deixava de fazer.
Aquilo me atraía como um vício. E eu voltava sempre.
Dona Gena me arrastava para o quintal e
começava a cantilena. Eu não devia ligar para a irmã. Sempre fora esquisita
assim; depois de velha piorava. Era a tristeza de sua vida. Também, coitada,
sem ninguém. Eram só as duas e Deus. Nem pai, nem mãe. Ainda bem que tinham a
casa. E o jardim! “Viu as minhas hortênsias? E as papoulas? Venha cá, venha
cá!” E me passava a mão pelo pescoço, alisava-me a face. Sua mão era áspera. Eu
sentia um arrepio, uma gastura imensa, mas ia de novo ver suas plantas, os
vasos, as avencas, as samambaias. “Veja, Paulinho. Enxertei beijos de duas
cores, estão nascendo lindinhos, misturadinhos! Olha aqui esta plantinha, está
vendo? Acho que ela está tristinha porque mora numa lata ─ vou mudar para o
vaso... Ah, o tinhorão de novo. Viu, viu? Regateiro como ele só! E as violetas,
tão silenciozinhas!...”
Após o último vaso (“as begônias, olhe
que peludinhas, macias como seu cabelo...”), alisava minha cabeça
demoradamente, o meu pescoço, levava-me até a cozinha. “Que você comeu ontem?
Doce de abóbora? Olhe o que tenho aqui!” Tirava do velho armário uma tigela
(flores azuis, um quebradinho na borda) e os figos apareciam, verdes, lindos,
boiando na calda grossa. Punha-me dois, três, cinco no prato. ‘Coma, meu
bem!...” Enquanto seus dentes trincavam a polpa macia dos figos, eu espiava as
panelas de ferro, lisinhas, polidas. O fogão avermelhado, com as três bocas de
chapa negra. Olhava só de viés para dona Gena, sentada a minha frente., de
olhos fixos no meu rosto, lábios meios frouxos, mostrando parte dos dentes
amarelados. De vez em quando tomava minha mão esquerda, apertando-a de maneira
brusca e dizendo baixo: “Está bom o doce, Paulinho? Quer mais? Você voltará
sempre, promete?”. E aí vinha o pior, que eu não entendia, mas sabia ser a hora
da minha saída. Dona Gena olhava-me muito, sempre esfregando minha mão; de
repente começava a choramingar baixinho, baixinho, levantava-se e corria para o
quarto, quase ali em frente. Acabado o doce, eu me levantava, passava pela
sala, saía e encostava a porta, ouvindo ainda o choro de dona Gena, que aos
poucos tornava-se muito alto, com soluços profundos e entrecortados.
Conto premiado no Concurso Nacional/78, promovido pela Academia Municipal de Letras de Minas Gerais.
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