Abro
a mesma gaveta, não sei quantas vezes. Derrubo as prateleiras sobre a cama.
Tento organizar papéis esparsos, pastas, envelopes... onde, diabos, guardei
aquele documento?
De
repente, aquela caixa verde, lá no alto, a tampa já meio detonada; preciso da
cadeira para alcançá-la... puxa, há quanto tempo não remexo essas lembranças;
fotos, cartas, bilhetes, desenhos...
olha eu aqui em meio às colegas, todas com aquelas saias azul-marinho,
as pregas quase emendando com os tornozelos. Quem
não as enrolava na cintura, um quarteirão depois da escola?
Que
cara de arteira! Eu era, mesmo, verdadeira moleca saltitante: pulava as latas
de lixo nas calçadas, até aquele dia em que saltei sobre o cachorro dorminhoco
e ele se levantou bem na hora. Que susto!
E
esse papel amarelado? Nossa, não acredito que guardei por tanto tempo esse
correio elegante: “para Susana, de seu apaixonado que lhe dedica a música –
Jura-me”.
Ah,
que saudade dos altofalantes dos parques e das quermesses!
Lourival.
Peraí, acho que tenho uma foto;
esparramo tudo... ah, achei! Não me lembrava de como era bonito. Mas preferi o
Rubens, “expert” nas artes da conquista.
Lourival,
parece que o vejo ainda no baile de formatura, copo na mão, olhos marejados.
-
Susana, é feio um homem chorar.
Já
lá se vão quarenta anos. Como teria sido minha vida com ele? Quem já não se
flagrou cogitando semelhante hipótese? Onde estará, como estará e com quem?
Pensará em mim, de vez em quando?
Jogo
tudo dentro da caixa e corro para o computador: entro no facebook e digito:
Lourival de Almeida (como era mesmo o outro sobrenome?)
Achei!
Impressionante essa Internet! E agora? Mando ou não o e-mail? E se estiver
casado. Se a mulher for ciumenta? Pode ser que não esteja ou não seja.
Seja
lá o que Deus quiser. Na minha idade não há mais espaço para pruridos de
medrosidade. Pronto, agora é esperar.
Que
sorte! Está separado, eu também, logo, não há com que me preocupar. Marco um
encontro? Espero que ele marque? Que coincidência, pensou em mim ultimamente e
recordou aquela única vez que fomos juntos aos cinema – lembrou-se até o nome
do filme: “BenHur”.
Quer
encontrar-se comigo. Onde? Restaurante, Shopping, Parque? Claro, como não
pensei antes? No cinema. Sempre fui uma cinéfila inveterada. Que filme? Corro
os olhos no jornal – “Meia Noite em Paris” – nada mais sugestivo. Combinado, às
20h45 na 6ª. fileira do lado esquerdo, como daquela vez. As salas hoje são bem
menores, mas 6ª. fileira é sexta fileira.
Chego
antes. Sento-me quatro fileiras atrás. Quero vê-lo passar. De gravata
azul-marinho de losangos vermelhos, conforme descreveu (vou precisar de
óculos).
Não
demora muito, eis que um senhor grisalho, bem apanhado, passa devagar, olha
para a esquerda, volta... meu coração sobressalta-se: cadê a gravata? Passa por
mim e senta-se 2 fileiras atrás, do lado direito. As luzes já se esmaecendo,
tiro ou não, a bolsinha dourada da sacola, levanto-me e vou, ou não, até a 6ª.
fileira... eis que atropelando minha indecisão, acontece a cena digna de ópera
bufa: um homem esquisito senta-se no lugar combinado; em seguida despenca pelo
corredor a mulher desvairada e, no lusco-fusco, estapeia o sujeito,
aparvalhado.
Prendo
a respiração, recuo 2 fileiras, passo pelo senhor distinto que olha para minhas
mãos. Não vejo gravata nenhuma. Caminho
para a saída, pernas pesadas, olhos vazios, toda desilusão.
Dois
dias sem abrir o “notebook”.
Crio
coragem e entro no meu e-mail. De Lourival para mim. Baixo ou não baixo. E se
for ele o cara que apanhou? Baixo.
-
Oi, Susana, o que houve? Por que não apareceu no cinema?
Coração
aos saltos, respondo que fui mas cheguei atrasada (que mentira!), justo no
momento em que, no lugar combinado acontecia o maior barraco.
-
Eu também presenciei a cena, mas onde estava você? Apesar da penumbra, vi uma
mulher maravilhosa olhando para mim, sem nenhuma bolsinha dourada.
Caiu
a ficha. Tivemos a mesma ideia: ver o outro primeiro. Respondo.
-
Também vi um senhor muito distinto mas não usava gravata nenhuma.
Imaginei
a gargalhada do outro lado. Que idiotas! Por que não trocamos logo uma foto
atuala?
Corro
para o quarto, derrubo a caixa verde e seguro a foto antiga, tentando decifrar
os traços marcados pelo tempo. (Qual documento mesmo estava procurando? Não
importa.)
Examino
exaustivamente a foto em preto e branco e tal como no filme “Eternamente Jovem”
tento envelhecer as feições Não há dúvida – É ele.
Só
espero que a mulher maravilhosa seja eu.
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