A Casa Verde- Tereza Aparecida Farah Nazário



    Viajei para revê-la. Logo que avistei a cidade, pensei nela. As ruas, as casas pareciam diferentes, mas o jardim da praça principal, o coreto e a igreja me trouxeram boas lembranças. Continuei andando pelas ruas da cidade, procurando um rosto conhecido. Em vão. Apressei o passo, ansiava por uma pessoa amiga e para rever minha tia.
    Ela me esperava toda sorridente, me beijando com muita saudade. Titia estava com um vestido estampado com botões de rosas vermelhas, alguns galhos verdes e o fundo branco. Ficou me olhando.
    - Como você está bonita! - disse ao me abraçar - Estou caprichando no almoço em sua homenagem, depois temos muito tempo para conversar. Está quase pronto. Você já sabe o cardápio, não é mesmo?
    Já sabia o cardápio, ela sempre procurando me agradar. Meu prato preferido: charuto de repolho. Não faltou o quibe cru e, de sobremesa, um pudim de leite condensado.
    Enquanto minha tia terminava o almoço, fiquei na sala olhando os retratos mais recentes dos primos. Eles  chegaram da escola ,alvoroçados, com a minha visita e com os meus presentes. Abriram os pacotes rapidamente e saíram correndo da sala. Na cozinha, todos falavam ao mesmo tempo:
    - Mamãe, o presente que eu queria tanto! Como a prima adivinhou?
    Depois do almoço, minha tia Madalena sentou junto comigo no sofá da sala para um cafezinho. Ela gostava bastante de conversar, foi logo contando  as novidades da cidade. Todos estavam em clima de festa. A festa de Santa Bárbara, a padroeira da cidade. Ela vendia velas para a procissão. As casas se enfeitavam: toalhas de renda nas janelas, imagens de santos, crucifixos,  flores... O andor com a santa percorria as principais ruas até o adro da igreja. A cerimônia terminava com a celebração da missa.
   Após a missa, todos corriam para a quermesse. Nas barraquinhas: queijos, doces, refrigerantes, quentão, vinho quente, pipoca, algodão doce, amendoim. Para as crianças: cachorro-quente, brigadeiro, pirulitos. Os adultos procuravam cadeiras em volta de uma mesa enorme, porque  o bingo ia começar.
    Com toda aquela alegria das pessoas, da minha família, senti um grande vazio, faltava minha amiga Adelaide, a melhor acordeonista da cidade, possuía uma bela voz e alegrava todas as festas. 
Morava na casa verde, de estilo barroco, minha preferida desde a infância.  O pai era dono de um cartório, gostava de imagens barrocas. A casa contrastava com as outras da rua. Sempre que passava por lá, parava para apreciar sua arquitetura diferente. Naquela época, ainda muito criança, não conseguia explicar essa preferência, no entanto, não desgrudava os olhos da casa, que me atraía por muitos motivos: um jardim grande, majestoso, com árvores frondosas, uma quietude exasperante e as imagens muito diferentes daquelas que eu conhecia. Comparava com as imagens da igreja: claras, alguns vitrais coloridos. Só na Semana Santa que a igreja era toda roxa:  um manto cobria o esquife escuro de Jesus Cristo em um dos altares.
    Já fazia bastante tempo que não visitava minha família. Encontrava sempre uma desculpa para adiar a viagem. Até que recebi uma correspondência que me deixara intrigada. A irmã da minha amiga Adelaide me enviara um CD. Fiquei ansiosa para ouvi-lo. Tive uma agradável surpresa com o presente – minha amiga conseguira gravar suas músicas, cujo resultado achei muito bom. Ao mesmo tempo, fiquei muito triste com a carta da irmã contando o falecimento da Adelaide. Morrera de repente, sem tempo de levá-la a um hospital. Sofreu um infarto.
    Senti mal, não ia revê-la. Que pena... Como ficou a família, depois de sua morte? E a casa verde? Nas imagens da infância, a casa estava sempre presente.  Com o CD na mão, concluí que precisava voltar à minha terra natal. Aquelas músicas me trouxeram tantas recordações.  Uma sensação estranha percorreu o meu corpo ao me lembrar daquela casa...
A viagem foi tranquila. Só senti falta do trem com baldeação, um restaurante para um pão com manteiga, um café. As lembranças da paisagem me reconfortavam. Minha querida mãe fazia questão de viajar de trem, quando visitava os parentes. Levava lanches, comprava refrigerantes, era um delicioso piquenique. Minha família adorava essas viagens.

    Não contei para os tios e primos o motivo da minha visita inesperada. A alegria deles foi tão grande com a minha vinda, que não comentei a carta que recebera.
    Fiquei pouco tempo na minha cidade natal, ela não era a mesma. Muitos lugares, muitas pessoas não me reconheceram. Também... depois de vinte anos. Talvez a ausência da Adelaide com quem eu brincara tanto, brigara tanto, tenha me deixado assim sem ânimo para ficar mais tempo com os meus parentes. Eram tantas disputas entre nós: quem cantava melhor na coroação da Virgem Maria no mês de maio, quem conseguia andar mais tempo de bicicleta nas ruas íngremes da cidade, quem ganhava prêmios no desfile do clube? Tudo isso me fez concluir que sem ela a cidade perdera o brilho, a alegria, o acordeom.
    No entanto, como podia ir embora sem antes visitar a casa verde, que tanto me impressionara na minha infância?  Continuava diferente de todas as outras casas. A irmã da minha amiga ainda morava lá.  Não tinha o mesmo cuidado do pai em relação à casa. Estava precisando de uma pintura, uma reforma: algumas paredes rachadas com infiltrações. Apesar dessa aparência descuidada, prosseguia imponente, sem se importar com as mudanças da rua, da cidade. As imagens barrocas lá estavam desafiando o tempo.
     Lúcia, a irmã de Adelaide, me convidou para entrar. Hesitei, as lembranças da casa e da minha amiga tão querida me doíam muito. Entrei, não consegui esperar nem o café, oferecido por ela. A casa parecia um museu:  na sala o acordeom jazia em uma poltrona, ouvia-se a música de um CD, o mesmo que eu recebera de presente. As cortinas estavam fechadas, havia uma réstia de luz bem na foto da minha amiga, ampliada, colocada em um quadro com uma moldura preta e filetes dourados. Seu olhar parecia me seguir, senti um calafrio. Percorri os corredores sombrios. Aquela casa com suas lembranças mexiam muito comigo.  Despedi da Lúcia e saí de lá, apressada; peguei o primeiro ônibus de volta para casa.
Soube depois, pela minha tia, que Lúcia havia conservado intato o quarto da irmã. Todas as suas roupas, partituras, seus sapatos, livros. Não aceitava opinião de parentes e amigos para se desfazer dos pertences da Adelaide e mudar daquela casa.
    Ainda fiquei uns dias embevecida com as minhas recordações. Muita coisa havia mudado, porém, o fato de ter voltado àquele lugar despertou em mim sensações, que julguei adormecidas. A casa verde me trouxe, em poucos dias, toda minha infância e adolescência.
    Pensei: que casa é essa? Por que ela continua mágica para mim? Tanto tempo já se passou, mas o encanto e a estranheza de sua relevância me deixaram encabulada, lembranças indeléveis daquela época.



         

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