Um dia de chuva- Maria Izabel Fellippe-Cerdeira


 
Quantas vezes por lá passei... Mas sem nunca aperceber-me do quanto significativo seria, os tais momentos e situações, das quais eu iria fazer parte.
O Céu sempre arruma um jeito, e quando a Providência divina molda, aperta ou empurra nada foge do contexto, nem um item, nem um til ou uma vírgula. Seriam os arcanos do destino?
Chovia e tanto que, seria impossível pensar sequer na possibilidade de sair para espairecer ou desfrutar de caminhadas pelos arredores tão verdes, tão aprazíveis.
Ficamos, duas professoras do vilarejo e eu, abrigadas e ilhadas, ali na igreja de Santa Terezinha, pois que o pároco nos pedira a presença, para tratarmos da devida catequese, que iniciaria em meados de janeiro.
Entre chás, biscoitos e muita chuva, seguíamos felizes, sentados em volta da grande mesa da sacristia, cuidando dos trâmites para o novo turno de crianças do ano letivo. O padre Miguel, por vezes, dotado de um humor invejável, soltava lá alguma piadinha, descontraindo, pois a monotonia da prosa.
Junto a porta principal, um chapeleiro de madeira envernizada, sustentava um chapéu coco e dividia espaço com um sobretudo forrado de lustrina e uma surrada capa de chuva.
Ao fundo, bem no canto da sacristia, dormitava enrodilhado sobre o tampo de um velho, mas conservado piano negro, donde o padre Miguel vez ou outra dedilhava belas melodias, o sossegado gato carijó, Mefistófeles, irreverentemente, ignorando nossa presença. Uma jarra de brancas flores Açucena se derramava em graça e beleza sobre ele, em puro deleite.
Uma goteira, lá fora, tamborilava monotonamente irritante. O ar carregado de umidade se fazia saturado, condensando nossa respiração.
Depois de tudo planejado e anotado em nossas agendas, chegara a hora de “baterem retirada”. A noite se fazia prenunciar quando, já preocupada com a volta para casa, despedimo-nos. Despencava um aguaceiro, que impossibilitava qualquer cristão de algum compromisso por aquelas horas.
Fomos surpreendidos de pronto, por alguém que ao longe chamava em brados e, que por conta do nevoeiro, somente um vulto se fazia cada vez mais próximo.
- Por favor, por favor, meu carro ficou atolado, preciso de ajuda!
O rapaz estava quase sem fôlego, devido à intensidade da chuva e, também encharcado, foi se explicando.
O padre Miguel por sua vez e, com certeza, pronto a ajudar foi exclamando:
- Ora, ora,onde é que esta o seu carro, precisaria de mais homens, pois que aqui, não há outro, senão eu. Mas sei quem pode nos ajudar.
Levado para dentro, arrumamos algumas toalhas e servimos um chá bem quente, que foi sorvido sofregamente. Sua expressão era de desânimo, levando se em conta a complexidade da situação, frente à inusitada ocorrência.
Minhas colegas saíram apressadamente, aproveitando a oportunidade de uma efêmera estiagem.
Pensei: Bah, eu também vou embora. Qual o que, eu vou-me embora e pronto. Mas o que tinha eu a ver com isso, ou não tinha?
Graças a Deus, parecia que o céu desligava um pouco a chuva, que de repente foi cessando. Já se aproximavam alguns homens que, chamados e instruídos pelo padre, ajuntaram-se em frente da igreja.
Voltei-me e apanhei minha bolsa, quando alguém me pegou pelo braço e em me virando surpresa, vi o rapaz parecendo até outra pessoa e com outra expressão que não a mesma, agora recomposto, agradecia-me, passando as mãos pelos cabelos úmidos, em menção de arrumá-los.
Somente agora pude observá-lo com mais atenção. Pensei com meus botões:
- Nossa, como é lindo.
E sorriu, deixando á mostra dentes tão brancos, como um perolaria, os cabelos insistiam em descer-lhe pela testa, dando assim um ar de jovialidade e graça.
Dois botões abertos da camisa deixavam a mostra o peito, no qual brilhava um crucifixo pequenino preso por uma correntinha de ouro, decerto.
Meus olhos, ligeiros, examinavam aquela obra de arte- um escultural acabamento das mãos do Divino Criador - perfeita figura humana, que me disse se chamar Adso.
Creio que a empatia seja algo espiritual. Há uma ligação forte de sentimentos recíprocos, do gostar de estar ao lado, poder inteirar a pessoa do nosso cotidiano, fatos corriqueiros. Compartilhamos por momentos os mesmos gostos, as mesmas ideias e nos sentimos felizes por poder existir pessoas que nos são simpáticas.
De repente uma onda de calor se me apossou, dentro daquela sacristia, e tudo parecia girar em câmera lenta, fora tudo tão significativo, cada palavra, cada gesto, que quando dei por mim, já era noite, e continuávamos ali em delongada e prazerosa conversa.
Alguém, ainda da rua, anunciou que tudo estava normalizado.
Trocamos telefones, para contatos, despedimo-nos com grande emoção na voz e, seu carro, então liberado, a chuva ora cessada, pôs fim há um inesquecível e casual encontro. Sonho ou realidade?
Lá fora, entre raras nesgas de fugidias nuvens, algumas estrelas rutilavam.
Nunca mais tornei a vê-lo e ele nunca me procurou.
Bah! Acordei. Foi apenas um dia de chuva.




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