Um Natal Diferente...- Alvim Barbosa (in memorian)


                                              
    Embora esteja festiva a cidade, não está alegre o meu coração. Há vários dias, as lojas exibem majestosamente suas árvores de Natal, seus presentes pequenos e grandes e, principalmente, caros. Um Papai Noel de madeira e muito bizarro não me chama atenção. Já não acredito em Papai Noel. Tudo o que pedi e esperei dele, jamais consegui. Não que eu pedisse coisas impossíveis. Absolutamente. Mas, é que Papai Noel foi sempre muito usurário e burguês.
    Faltam poucos dias para o Natal. À noite as lojas permanecem abertas. Saio a andar à toa. Vejo vitrines. Livros. Presentes finos e  extravagantes. Senhoras que entram e saem. Embrulhos de vários tamanhos.Tenho certeza de que  aquela senhora loira comprou a boneca espanhola que ainda ontem estava exposta nesta vitrine. Homens que passam:
    - Acho que ela vai ficar boba com o presente deste ano! Riem. Sinto inveja. Tenho vontade de comprar para “Ela” um presente que faria inveja a muita gente. Mas, é só a vontade. É só olhar as vitrines e continuar andando para o Nada...
     O meu problema não é  único. Há milhares idênticos. (Nem nisso a gente pode ser exclusivista!) Interrompi os estudos, pois o ordenado não dava para pagar  o quarto miserável da pensão e a taxa estudantil. E, se ainda não bastasse esta desventura, o patrão me despediu por me achar arrogante e  atrevido. De nada valeram minhas súplicas. Também, do emprego eu não gostava. Não que o serviço fosse pesado de mais, o que me aborrecia era a impertinência do chefe e suas ordens absurdas e contraditórias. Mandava fazer uma coisa e depois dizia que não havia mandado. O remédio era desfazer para, no outro dia, fazer de novo. Era um inferno! Mesmo assim eu ia suportando, embora resmungasse pragas contra o  patrão. Ele não ouvia, e se ouvia, fazia que não. Lembro-me bem. Era um restaurante e eu me interessei pelo trabalho, a princípio porque a gente tinha a oportunidade de conhecer muitas pessoas. De todas as condições. E como eu servisse a todos com a mesma disposição, dando mais atenção aos pobres como eu do que aos ricos, isto valeu-me uns bons “pitos” do chefe.
     -Por que você não serviu aquela sobra de carne de ontem?
    -Ué, ele não pagou o preço da tabela?
    -Sim, mas você poderia ter servido a sobra p´raquele idiota e ter cobrado o mesmo preço.Você é um cretino que não sabe negociar.
     -Ah!Não gosto de tapear ninguém.
    Assim era. Um dia entornei um prato de sopa na roupa de uma senhora elegante, e o miserável do patrão teve a ousadia de me puxar as orelhas.Chorei de raiva, pois a culpa fora da mulher. Mas o patrão não quis saber disto, o que ele queria era me puxar as minhas orelhas. Fui para a cozinha e sentei-me num canto ruminando maldições e pragas contra aquele burro. E, juro por DEUS, se as pragas pegarem, não me arrependerei nem um pouco. O cozinheiro do restaurante foi, talvez, o único amigo que encontrei até hoje. Sempre guardou para mim gostosos bocados que eu levava escondido para minha mãe. Porém, isso durou pouco. Uma vez, ia saindo com um embrulho debaixo do paletó e o patrão percebeu. Eram, apenas alguns pedaços de frango frito, um pouco de farofa chinesa e uns dois ou três bifes. Quando ele abriu o embrulho que me tomara à força, quase tive um desmaio. Eu, sinceramente, tremia da cabeça aos pés, se as portas não estivessem fechadas, teria saído correndo como uma bala de canhão.
    -Ladrão também, hein? -  bufou.
    O copo que estava perto dele chegou a tremer com a potência do grito
     -Já te ensino seu pequeno rapace!
     -Todo o mundo lá dentro me olhava. A vergonha que eu passei doeu mais do que os tapas que ele me deu na cara. O cozinheiro ouvindo meus gritos, apareceu  assustado.
    -Seu palerma, você não viu esse ladrão abocanhar essas iguarias? O pobre do Gustavo me olhou com piedade, e se eu não tivesse respondido por ele, tenho certeza de que ele confessaria ser cúmplice do roubo.
    -Ele não viu nada. Eu tirei quando ele saiu.
     - Confessa então, não é? E pa, pa, pa, na minha cara. O sangue escorria pelos cantos dos lábios.
    -Eu devia era mandar você para a polícia.
      Quase desmaiei quando ele disse isso. Para mim, não havia nada pior no mundo do que a polícia. Um conhecido fora enviado para lá e até hoje, depois de dois  anos, ainda não o vi. Só por que ele roubara a carteira de um deputado.
     - Não! Pelo amor de DEUS ”seu” João, não me manda para a polícia.
    Chorei tão amargurado que a esposa do patrão, que acompanhava minha desgraça com prazer, teve para mim um gesto de piedade.
    -Chega, João. Ele já foi castigado.Tire as contas dele e mande-o passear.
    -Por favor, senhora! Eu não posso sair, o que eu ganho é para sustentar minha mãe.
    Não adiantou nada. Acabei mesmo na rua com trezentos cruzeiros no bolso. O relógio da Catedral estava parado nas três horas. Entrei num bar e comprei pão e linguiça para  minha mãe que esperava o jantar. Hoje ela não comeria frango nem farofa chinesa.
    Foi assim que perdi o meu primeiro emprego, onde eu apanhava, mas comia muito bem. Mamãe não viu minhas faces vermelhas e inchadas, consequência  dos  tapas daquele bufão. Nunca achei um qualificativo que calhasse tão bem para o antigo patrão! Não contei para minha velha mãe que havia perdido o emprego. Por isso, saí na hora costumeira para procurar novo serviço. Achei. Era longe de casa, mas dava para pagar o aluguel. O sapateiro era português e contava umas piadas muito sem graças que me faziam rir por consideração. À noite eu as repetia para minha mãe que gostava muito. Ela nunca reclamou a falta dos petiscos tão gostosos que eu trazia quase todas as noites para ela.
    -Você saiu do restaurante, meu filho?
     -Não senhora. Por quê?
    Minha mãe sorriu compreensivamente, e procurando alcançar-me, com as mãos, alisou meus cabelos. Não sei se já disse que minha mãe é cega. Se eu soubesse que o Gustavo havia conversado com ela e contado tudo, teria falado a verdade. Mas só vim a saber várias semanas mais tarde.
    O sapateiro português deixou-me aproveitar  uns pedaços de couro e eu fiz umas chinelas bem confortáveis para minha mãe. E consertei um sapato roto para  mim. Assim fiquei com dois pares de  sapatos quase novos. Trabalhei com esse bom português durante quatro meses, até que o pobre foi atropelado por um caminhão. A sapataria fechou porque a mulata que era amigada com o “seu” Manoel, resolveu amasiar-se com um soldado.
     -Se você fosse mais velho, eu bem que toparia contigo, -disse-me quando me despediu. Coitada, era muito boa, só que tinha um fraco danado por homem. Nem bem o português esfriava na cova, já havia outro na cama com ela. É a vida. E o que acontece neste mundo não me causa estranheza. Tudo é possível. Mas vamos ao que interessa.
    Consegui um empreguinho numa casa familiar. Era fazer compras, cuidar do jardim, lavar o carro novo do chefe e dar banho no cachorro da madame. Serviço infame! Eu gostava mesmo era de fazer compras. Regateava tanto nos preços, e fui sempre tão honesto com a patroa que ela começou a simpatizar comigo. Mas o prazer que isso me dava era anulado quando tinha que lavar o cachorro francês de  Mme. Fleur de Roche. Ele latia, esperneava, mordia e eu não podia, sequer, lhe dar uns bons e merecidos tabefes, pois a Mme. não saia de perto.
    -Mon cheri... mon coeur...e alisava o cão, fazia carícias, beijava-o, passava perfumes, amarrava laço de fita vermelha e punha-se a conversar com ele em francês. Creio que ele entendia perfeitamente, mais do que eu, pois obedecia todas as ordens de Mme. Eu também não gostava do serviço de jardineiro, mas o jardim era outra mania da francesa. Às vezes, eu me deixava ficar ouvindo-a amar o marido em francês, não entendia bem as palavras, mas me divertia muito. Uma tarde fui pego em flagrante e ela não se zangou como eu esperava:
    -Garçon, isso non se faz... é feio.
    Fiquei encabulado e me desculpei. Ela sorriu.
    Principiei a gostar do trabalho e muito mais dos banhos de sol que Mme. tomava  no jardim. Quando isso acontecia, eu trabalhava com prazer e o serviço rendia. Olhava tanto para as pernas de Mme. Que um dia ela perguntou sorridente:
    -Petit canaille! Gosta de meus pernas, non?
    Tive que confessar que sim.
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     Em casa, mamãe vivia falando que eu precisava  conseguir serviço melhor, e falou tanto que saí para o trabalho, com raiva. Por infelicidade era dia do banho de “Pierre”. Preparei a  àgua com todas as essências e tratei de agarrar o animal. Mme. dormia, pois fora a uma festa e acordaria tarde. Fiz carinho no cão, dei carne para ele comer enquanto o banhava, para evitar seus latidos. Na hora de passar sabão, ele pulou da tina e correu para sua casinha. Fui atrás. Chamei com voz melosa, como Mme. fazia  quando conversava  com ele. Arreganhou os dentes e quando fui agarrá-lo, mordeu-me o braço direito. Senti tanta raiva que sem pensar no que fazia dei uma vassourada na cabeça do animal. Não contente com a minha malvadeza, dei outra e outra. Foi a conta. Os aulidos cessaram como por encanto e o cão estrebuchou. Logicamente, para completar a cena, Mme .teria que acordar .E foi justamente o que aconteceu. Fui para a rua no mesmo dia, depois de ouvir os lamentos franceses e as frases proibidas que ela bem  sabia  em português e despejou sobre mim.
    Mesmo  assim, continuo gostando da Mme.. Tinha umas pernas tão bonitas!
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    Agora é mais difícil conseguir trabalho. Nos festejos para o Natal, o que todo o mundo quer é o seu próprio conforto. Não me revolto com isso e compreendo tudo muito bem. Só não entendo porque DEUS tirou a vista de minha pobre mãe. Sim, eu também sou infeliz, mas posso ver esse sol maravilhoso, essa lua tão bela, essas estrelas rutilantes. Posso admirar o desabrochar das flores, as árvores, os animais. Posso sentir a beleza da pródiga  natureza. Ela também já viu tudo isso e ninguém amou mais a natureza do que minha mãe. Nem mesmo Kháyyán!
    Pobre mãe! Não pode ver sequer as bolas coloridas que aquele Papai Noel de madeira segura numa das  mãos. Não pode ver sequer essa criancinha loira  que passou por mim agora. Não pode ver nada, como se isso não bastasse, sofre as agruras deste destino  impiedoso. Quando não tenho emprego ela não come. As rendas que seus dedos faziam, nos ajudavam muito, mas os calos estão tão grossos que já não pode manejar a agulha. Pobre mãe cega!
     O nosso Natal seria bem diferente se Papai Noel lhe devolvesse a vista.
    Mas, eu não acredito em Papai Noel!
     

 Ribeirão Preto, 1956-jornal O DIÀRIO     



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