Já
vai longe o meu aprendizado na escola da vida, ainda na fase incerta da
adolescência, adquirido por observação e vivência diárias na pequena Pirangi.
Muita
saudade me traz a simples evocação desses bons tempos, quando trabalhava no
“Bazar Vitória” do primo Belmiro.
Sobrinho
da vó Nina, na verdade ele era primo do Mário meu pai, mas eu o chamava de
primo também. Casado com a Irene Marconato tinha dois filhos, o Luís Carlos, da
minha idade, e a Leila pouco mais nova.
Foi
com ele que aprendi a resolver os intrincados esquemas das palavras-cruzadas.
Eu o observava decifrar os que eram apresentados no jornal “Estadão”, problemas
de difícil solução, por sinal. Mas para o primo, nem tanto.
O
Belmiro fora, há tempos atrás, um profissional das artes gráficas e juntamente
com meus tios Alexandre e Solano Braga e José Fernandez, fizera parte do quadro
de funcionários de escol, da famosa Tipografia Santo Elísio, vendida no início
da década de 40, aos Irmãos Madeira de Bebedouro.
Costumado
a ler muito era, em suas abalizadas críticas, portador de lacônica e fina
ironia. Permitia-me ler os exemplares da sua vasta coleção da revista “Eu Sei
Tudo” – verdadeira maravilha de instruções e profícua literatura – bem como
todos os livros da série “Caçando e Pescando Por Todo Brasil”.
Gostava
de “pitar” um cigarrinho de palha feito por ele mesmo e que, embora aromático,
tinha sempre a educação de fumá-lo em lugares abertos. Dizia que era um vício adquirido
de outro vício: a pescaria.
São
inúmeros e dignos de relato os fatos ocorridos que eu presenciara por trás
daquele balcão.
Foi
“garimpando” no imenso monte de “cascalhos” de minhas recordações, que escolhi
uma “pepita”, digna de apreciação, fato esse, cuja ocorrência, foi-me preciosa
aula de discernimento na avaliação do comportamento de criaturas, que muitas
vezes eu as considerava portadoras de apurados tirocínios.
Instalados
na esquina do jardim da igreja de Santo Antônio, prédio onde outrora fora a
farmácia do senhor Juju, de saudosa memória, tínhamos vindo lá da rua do
centro, onde o local se fizera pequeno, pois que a prima Irene diversificando
suas atividades, iniciara-se no comércio de roupas íntimas femininas, e
encontrou a solução, mudando-se para a grande casa anexa ao bazar, onde
passaram a residir.
Sempre
às quintas-feiras, passava por Pirangi, o “revisteiro”, um esperto e ágil rapaz
que vinha de Bebedouro, servindo aos pirangienses, uma farta gama de
publicações sempre atualizadas de livros e revistas, “missão” esta que, de bom
grado, vinha preencher as reais necessidades do público leitor.
Este
revisteiro dispunha-se, também, como expediente, vez ou outra, trazer por
prévia encomenda facilmente carreável, pequenos objetos em falta na cidade.
Numa
segunda-feira, entrou no estabelecimento, conhecido e respeitado construtor de
carroças, um cidadão rotundo e que, por consideração, foi atendido pelo meu
primo.
Desejava
ele, presentear o neto que logo faria aniversário, com um mimo diferente. Assim
o primo ofereceu-lhe, uma gaita-de-boca Hering, de dupla embocadura, duas
afinações, toda colorida de amarelo, branco e vermelho, uma maravilha para os
olhos.
Aquela
harmônica era, há muito, objeto do meu discreto anseio em possuí-la e, aposto
sem medo de perder que, do Luís Carlos também. Para nós, o desejo de ter aquela
gaita nas mãos, se nos apresentava como um sonho irrealizável e, mentalmente,
eu calculava que precisaria trabalhar um mês inteiro para comprá-la.
O
“monumental” senhor achou magnífica a sugestão, mas não gostou do preço.
Apesar
de ser-lhe oferecido um desconto, pois o primo Belmiro queria circular aquela
mercadoria que já se fazia de difícil comércio, o cliente sopesando aquela
preciosidade numa das mãos, avaliou-a por todos os ângulos e, mostrando ares de
entendido, abanou a cabeça, dizendo que iria pensar no caso.
A
gaita voltou para o seu lugar seguro, uma vitrine fechada à chave, disputando
espaço com outros objetos de valor, tais como joias, perfumes e
canetas-tinteiro de luxo.
Os
dias passaram rápidos e naquela quinta-feira, o revisteiro adentrou açodado o
bazar e o Belmiro o atendeu de pronto. Disse ele que um de seus fregueses
encomendara-lhe, para trazer de Bebedouro, uma gaita-de-boca para presentear
alguém da família, e a azáfama o fizera esquecer-se da incumbência.
O
primo ofereceu-lhe a única peça disponível e, após um “chorado” desconto
concedido para ajudar o rapaz, ainda caprichou num bonito embrulho para
presente.
Agradecido,
o revisteiro saiu alegre e satisfeito. Sabíamos, sem precisar perguntar-lhe, o
destino daquela encomenda. O primo olhou para mim e apenas sorriu. Finalmente
aquele objeto, que já estava “aniversariando” na vitrine, concluiria seu destino
mercantil: teria um novo proprietário.
Na
semana seguinte, o sagaz revisteiro “segredou” ao Belmiro que conseguira ganhar
um pouco mais naquela encomenda, pois o cliente, agradecido, não fizera questão
de preço.
Dias
depois, o “piramidal” senhor, “rebolando” em direção a sua casa, jardim abaixo,
ao avistar o primo Belmiro na porta do bazar, enrolando um cigarrinho de palha,
deu-lhe, por educada justificativa, a informação do que havia resolvido sobre o
presente para o neto. Disse que o adquirira em Bebedouro, um pouquinho mais
caro, – e completou enfatizando – “... mas o que fazer, neto é neto!”.
O
primo Belmiro aquiesceu e “pensando alto”, o bastante para que eu pudesse
ouvir, murmurou: “Ele fabrica ou puxa carroças?”.
Depois,
saiu para a calçada, acendeu e pôs-se a baforar seu perfumoso “paiero”.
Que
eu me lembre, não comentamos com ninguém, a ocorrência deste inusitado fato,
por consideração e respeito ao pequeno industrial da nossa cidade.
Algum
tempo depois, o primo Belmiro vendeu o bazar para o Zé Nunes e mudou-se com a
família para São Paulo, indo residir no bairro de Vila Maria.
E o
“revisteiro”?
Continuou,
ainda, por muito tempo, a visitar-nos e, sempre que solicitado, trazia alguma
mercadoria facilmente carregável. Ah, quando não se esquecia, é claro!
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