Vivendo e aprendendo- Paulo Braga Neto



Já vai longe o meu aprendizado na escola da vida, ainda na fase incerta da adolescência, adquirido por observação e vivência diárias na pequena Pirangi.
Muita saudade me traz a simples evocação desses bons tempos, quando trabalhava no “Bazar Vitória” do primo Belmiro.
Sobrinho da vó Nina, na verdade ele era primo do Mário meu pai, mas eu o chamava de primo também. Casado com a Irene Marconato tinha dois filhos, o Luís Carlos, da minha idade, e a Leila pouco mais nova.
Foi com ele que aprendi a resolver os intrincados esquemas das palavras-cruzadas. Eu o observava decifrar os que eram apresentados no jornal “Estadão”, problemas de difícil solução, por sinal. Mas para o primo, nem tanto.
O Belmiro fora, há tempos atrás, um profissional das artes gráficas e juntamente com meus tios Alexandre e Solano Braga e José Fernandez, fizera parte do quadro de funcionários de escol, da famosa Tipografia Santo Elísio, vendida no início da década de 40, aos Irmãos Madeira de Bebedouro.
Costumado a ler muito era, em suas abalizadas críticas, portador de lacônica e fina ironia. Permitia-me ler os exemplares da sua vasta coleção da revista “Eu Sei Tudo” – verdadeira maravilha de instruções e profícua literatura – bem como todos os livros da série “Caçando e Pescando Por Todo Brasil”.
Gostava de “pitar” um cigarrinho de palha feito por ele mesmo e que, embora aromático, tinha sempre a educação de fumá-lo em lugares abertos. Dizia que era um vício adquirido de outro vício: a pescaria.
São inúmeros e dignos de relato os fatos ocorridos que eu presenciara por trás daquele balcão.
Foi “garimpando” no imenso monte de “cascalhos” de minhas recordações, que escolhi uma “pepita”, digna de apreciação, fato esse, cuja ocorrência, foi-me preciosa aula de discernimento na avaliação do comportamento de criaturas, que muitas vezes eu as considerava portadoras de apurados tirocínios.
Instalados na esquina do jardim da igreja de Santo Antônio, prédio onde outrora fora a farmácia do senhor Juju, de saudosa memória, tínhamos vindo lá da rua do centro, onde o local se fizera pequeno, pois que a prima Irene diversificando suas atividades, iniciara-se no comércio de roupas íntimas femininas, e encontrou a solução, mudando-se para a grande casa anexa ao bazar, onde passaram a residir.
Sempre às quintas-feiras, passava por Pirangi, o “revisteiro”, um esperto e ágil rapaz que vinha de Bebedouro, servindo aos pirangienses, uma farta gama de publicações sempre atualizadas de livros e revistas, “missão” esta que, de bom grado, vinha preencher as reais necessidades do público leitor.
Este revisteiro dispunha-se, também, como expediente, vez ou outra, trazer por prévia encomenda facilmente carreável, pequenos objetos em falta na cidade.
Numa segunda-feira, entrou no estabelecimento, conhecido e respeitado construtor de carroças, um cidadão rotundo e que, por consideração, foi atendido pelo meu primo.
Desejava ele, presentear o neto que logo faria aniversário, com um mimo diferente. Assim o primo ofereceu-lhe, uma gaita-de-boca Hering, de dupla embocadura, duas afinações, toda colorida de amarelo, branco e vermelho, uma maravilha para os olhos.
Aquela harmônica era, há muito, objeto do meu discreto anseio em possuí-la e, aposto sem medo de perder que, do Luís Carlos também. Para nós, o desejo de ter aquela gaita nas mãos, se nos apresentava como um sonho irrealizável e, mentalmente, eu calculava que precisaria trabalhar um mês inteiro para comprá-la.
O “monumental” senhor achou magnífica a sugestão, mas não gostou do preço.
Apesar de ser-lhe oferecido um desconto, pois o primo Belmiro queria circular aquela mercadoria que já se fazia de difícil comércio, o cliente sopesando aquela preciosidade numa das mãos, avaliou-a por todos os ângulos e, mostrando ares de entendido, abanou a cabeça, dizendo que iria pensar no caso.
A gaita voltou para o seu lugar seguro, uma vitrine fechada à chave, disputando espaço com outros objetos de valor, tais como joias, perfumes e canetas-tinteiro de luxo.
Os dias passaram rápidos e naquela quinta-feira, o revisteiro adentrou açodado o bazar e o Belmiro o atendeu de pronto. Disse ele que um de seus fregueses encomendara-lhe, para trazer de Bebedouro, uma gaita-de-boca para presentear alguém da família, e a azáfama o fizera esquecer-se da incumbência.
O primo ofereceu-lhe a única peça disponível e, após um “chorado” desconto concedido para ajudar o rapaz, ainda caprichou num bonito embrulho para presente.
Agradecido, o revisteiro saiu alegre e satisfeito. Sabíamos, sem precisar perguntar-lhe, o destino daquela encomenda. O primo olhou para mim e apenas sorriu. Finalmente aquele objeto, que já estava “aniversariando” na vitrine, concluiria seu destino mercantil: teria um novo proprietário. 
Na semana seguinte, o sagaz revisteiro “segredou” ao Belmiro que conseguira ganhar um pouco mais naquela encomenda, pois o cliente, agradecido, não fizera questão de preço.
Dias depois, o “piramidal” senhor, “rebolando” em direção a sua casa, jardim abaixo, ao avistar o primo Belmiro na porta do bazar, enrolando um cigarrinho de palha, deu-lhe, por educada justificativa, a informação do que havia resolvido sobre o presente para o neto. Disse que o adquirira em Bebedouro, um pouquinho mais caro, – e completou enfatizando – “... mas o que fazer, neto é neto!”.
O primo Belmiro aquiesceu e “pensando alto”, o bastante para que eu pudesse ouvir, murmurou: “Ele fabrica ou puxa carroças?”.
Depois, saiu para a calçada, acendeu e pôs-se a baforar seu perfumoso “paiero”.
Que eu me lembre, não comentamos com ninguém, a ocorrência deste inusitado fato, por consideração e respeito ao pequeno industrial da nossa cidade.
Algum tempo depois, o primo Belmiro vendeu o bazar para o Zé Nunes e mudou-se com a família para São Paulo, indo residir no bairro de Vila Maria.
E o “revisteiro”?
Continuou, ainda, por muito tempo, a visitar-nos e, sempre que solicitado, trazia alguma mercadoria facilmente carregável. Ah, quando não se esquecia, é claro!




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