Já marquei o dia: 23 de abril de 2026. Mas como essas coisas são
imprevisíveis, achei por bem deixar por escrito minha declaração de vontade.
- Ainda que mal lhe pergunte:
por que essa data?
- Porque é o dia do meu
nascimento e minha neta caçula já estará na Faculdade.
Não vou falar do enterro que não acontecerá. Só do velório, que vem de
velar.
- Velório não vem de vela?
- Não. A propósito, não quero
velas. Só uma lâmpada votiva, na cor azul. Velas esquentam o ambiente e cheiram
a defunto.
- Ué, mas não estará morta?
- E daí? Vou querer o incenso
mais cheiroso, o perfume Poisson do Boticário e maquiagem suave em tons de
azul. E batom cor de boca, por favor.
- Se é cor de boca, pra quê
batom?
- Já viu boca de defunto? Cor de
cera. Também não quero aquelas flores típicas que atraem mosquitinhos
insuportáveis entrando pelas narinas fazendo com que todo mundo fique se
abanando, como se o defunto fedesse.
- E defunto, de onde vem?
- Acho que do latim e em nosso
bom “giriês” quer dizer “fui”.
- Mas coroas, tudo bem?
- Pra quê, se não haverá
sepultura? Aliás, não gastem com urnas entalhadas e reluzentes. Nem com veludos
e franjas douradas. Me coloquem numa cama, assim as crianças cuidarão que
durmo. E não precisam puxar o terço, que a maioria recita mecanicamente reparando
uns nos outros. Apenas um Pai Nosso de mãos dadas e olhos fechados. Não vou
pedir que não chorem. Lágrimas lavam a dor.
- Sabe, estava pensando...no
aniversário, seu anjo estará por perto.
- Sim. Kavachiah, com K.
- Não seria com Ch?
- Prefiro com K. E depois, anjos
não têm certidão de nascimento. E, por falar em anjos, quero música, muita
música! Ao piano, Clair de Lune, de Debussy. Violinos executarão a Ária da 4ª
Corda de Bach e Ave Maria de Schubert. No violão, Abismo de Rosas e, a caminho
do crematório, flautas e bandolins com Pedacinho do Céu.
- Então vai mesmo ser cremada. E
aquele preceito bíblico “ao pó retornarás”?
- Tem mesmo isso na Bíblia? Ora,
não serei pasto para vermes. Que me perdoem os ecologistas, mas o fogo purifica
e eleva. E depois outra, cinza também não é pó?
- E vai jogá-las no mar, enterrar
no jardim ou guardar num cofrinho?
- Que ideias mais obsoletas! Se
fosse rica, eu as mandaria para a Suíça, onde seriam incrustadas em joias. Como
sou poeta, desejo que sejam misturadas às tintas de um artista e eternizadas em
linda tela, também em tons azuis.
- Puxa, você é fissurada em azul,
hein?
- Sou. Quando criança, eu era
dona da Valsa Azul (minha irmã tinha a cor-de-rosa). E eu cantava “Esta valsa,
esta valsa / tão feliz e taful / esta valsa também é azul”... Eu não sabia o
significado de taful, mas achava lindo. Ah, quero que me vistam com um vestido
azul.
- Você não está se esquecendo de
nada?
- ???
- Não haverá dança?
- Sim, claro, podem dançar o
tempo todo. E se algum bandoneón tocar Adiós, Nonino, de Piazzola, juro que me
levanto e danço o Tango da despedida.
- Cruz Credo!
(Escrita em dezembro de 2012)
Comentários
Enviar um comentário