Dona Florinda e o coronel- Lucília Junqueira de Almeida Prado


               
                Coronel Baltazar. Nascido na abastança: um sem conta de alqueires lá pras bandas do Rio Vermelho, Goiás entrante. Tudo em pastagens. Colonião formado sem esforço, sob a força da natureza. Nenhuma quiçaça. Zebus pastejando. Que sobrevoados semelham os dum cupinzeiro acabado de levar pontapé, arredados em muitos mil. Tantos. Tantos. Um mundo. A se deslocarem. Preto e branco espacejando o verdeal. É que Coronel Baltazar usa percorrer suas invernadas montado num Cessna, avião e aviador particulares. E outro jeito não haveria de minuciar, manejar aquele sem-fim de chão.
                Coronel Baltazar. Com tanto dinheiro porém, no contudo da vida, má figura: boca de lábios regaçados como os dum sapa-concho, nariz à Cirano, avançadíssimo, isso sem demandar pelos bagulhos de peixe-boto, arregaladões, cabelo vermelho, em fartura braseado que, nem na idade de encanecer, perdiam seu ar fogoso. E, ainda, o pior: corpo macérrimo, todo malhado ao jeito dum cavalo pampa. Jerebento. Diziam ser doença do fígado. Coronel Baltazar: mais feio que a mãe do sarampo.
                No entanto, conquistador. E ardiloso. Assim, a idade madura não o reprimira, pois se até na bochecha da sua mulher usava cortejar! Desonroso. Sujeito que não podia ver um palmo de cara bonita, um esboço de seio debruçado em decote mais ousado ou pernas esguias alçadas por minissaia. Vinha logo com seus ditos sem respeito:
                - Tá usando seu abajur-de-bunda, menina?
                Um desaforado que o povo da cidade tolerava porque o rico, quando rico mesmo, tem direitos adquiridos no decorrer de suas dádivas: se a Santa Casa precisava de um aparelho de fotografar ossos, miúdos e graúdos, Coronel Baltazar fazia a doação; se o futuro deputado, filho de um compadre velho amigo, desconfiava que, por trezentos votos, ia ficar na rabeira, com trezentas botinas coronel Batazar franqueava-lhe a vitória; se seu vigário da paróquia insistia num salão novo a fim de aí ensinar catecismo, realizar encontro de jovens, não precisava nem pedir, Coronel Baltazar lá vinha com a sua:
                - Padre Laudelino, seu ladino! Sacana duma figa... Não me venha com partes de catequese, inda mais nessa vozuntosa que só vai bem pra macho passando bicaria em menina linda. Sem vergonha! Vai logo dizendo o quanto, assento o jamegão e vosmecê passa ali para a salona para encher de vento minha véia dona Quedinha, que acredita em céu e ínferno, reza em oratórios toda noite e não falta à missa nem por morte de parente. A sonsa! De tanto bajular seu Cristo, acho que até eu já tenho um cantinho reservado lá no céu, padre! Mas é visto: vou desistir da querença... As boazudas, minhas guapas boas de cama tão indo todas pro inferno, padre! Como é que faz?
                Padre Laudelino dava seu sorriso de perdão; na calada, rezava-lhe um padre-nosso em que punha mais calor naquele muito cabido “perdoai as nossas ofensas”.
                É que Coronel Baltazar tinha o direito de assim falar, afrontante, desacatante, mesmo com o senhor vigário, mesmo nessa irreverência profanadora, pois um benemérito dessa classe tinha de ter seu desconto, não se achava a três por dois. Como tinha o direito de dar em cima de toda mocinha despontante, de toda mulher casada, viúva, desquitada ou sobrada porque bem diz um conhecido e muito antigo ditado: “Com que pode não se brinca...”
               
                Até o dia em que seu João Divino e dona Florinda – vindos de um sítio de tapioca e amendoim, a fim de, no comércio, educar os filhos – mudaram-se para o lugar. Mais precisamente, até o dia em que dona Florinda veio belezar a cidade, pois esse entrecho de vida é dela, de dona Florinda dos olhos de santa bêbada, com o devido respeito. Outra representação não alcança a força daquelas duas contas azuis, semi-amoitadas dentro das pálpebras, como dois faróis dispostos em luz baixa. “Sexy”disse o Coronel, quando os viu pela primeira vez, empregando aquela única palavra sua conhecida em língua estrangeira. Esse entrecho de história é deles, de dona Florinda, divina, maravilhosa, e do Coronel Baltazar, homem com tanto dinheiro e arrenegos que, até ali, nunca levara um desaforo para casa.
                Não que seu João Divino não fosse cabra-macho, másculo e valente. Era também zeloso nos seus ciúmes, mas viajor. Boiadeiro que vinha e logo seguia rumo à divisa mato-grossense, atravessava rios, terras planiças, às vezes pra lá de Anápolis, lugar pai-de-bompara ajeitar garrotadas, criadas na larga e,  por isso, sadionas, fazendeiros menos avisados, mais fáceis de embromar.
                Dona Florinda ficava cuidando da casa, dos filhos, dois meninossambangos, magrelos, de joelhos rombudos disformemente desenvolvidos. Uns moleques ruins de engorda, que não faziam jús à sólida corpulência do pai, nem à auroral beleza materna.
                E, pois, uma aurora, pintando para amanhecer de um dia que promete, quente, abafadiço, de céu que vai ser azul como asa de borboleta, de sol-bolona-de-fogo sem o estorvo de nuvens.
                Seu João Divino – mudança consumada, os móveis e os trens postos nos devidos, o dinheiro para o semanal renunciado no bolso do terno escuro – lá vai, escoteiro, atrás de boiada de trezentos, notícia de que boa-de-caixa, zebua, chegada nos dois anos. Seu João Divino quer progresso; por isso não perde tempo nem facilita, não refuga serviço. Inimigo de veleidades, luta pelo sustento e por mais que reserva no Banco, para ir aumentando a sitioca de onde vieram, um dia vir a ter uma fazenda de gado e criação. Um velho sonho.
                No silêncio. Vindo dalguma vizinhança, o cantar dum sofrê-madrugador, reclamando sua sina, triste como fora aquela despedida. Dona Florinda vem voltando, alcança a cozinha pela lateral da casa. Sorumbática. O penhoar de cetim, inda aquele recortado do vestido de noiva, modela-lhe o corpo. E não reparar que, detrás da veneziana alta do sobrado vizinho, casa desmanchada em tamanho, esbanjante de riqueza, um par de olhos estúrdios perseguem suas nádegas à italiana, olhos cobiçosos, ávidos em conhecer-lhe maiores desabrochos.
                Dona Florinda está melancólica, cheia de cuidados. Sozinha numa cidade estranha. O anilado olhar guarda cuidados, pensamentos que nada têm de azuis: “Seu João Divino foi-se por um mês...” Seu João Divino... E se, às vezes, embaixo das cobertas deixa escapar um “Joooooôo, ôôôôôJoooooão...” (com suspiros), Seu João Divino nem repara, envolvido que está nas quenturas de seu amor.
                E pois, dona Florinda chega à cozinha sem dar conta da admiração que, desde a véspera, mesmo no lufa-lufa da mudança, desperta no vizinho. Então! Assim o destino quis. Vizinhos: dona Florinda e Coronel Baltazar.
                Sem delongas entra em casa. Direto para o quarto. De janela aberta. Daquele mesmo lado. E não pode ser, mas os olhos do homem continuam lá, detrás da veneziana, assombrados de esperança. Baixa a vidraça fosca, deixa a translúcida por cima, sem malícia, sem muito pensar,na lembrança de que precisa vestir-se, sair, ir atrás de escola para os meninos, um doutor que lhes dê, em consulta, fortificante moderno, para crescerem e engordarem, dar-lhes alento, como acontece com os garrotes viajados postos em pastagem de primeira. Dona Florinda pensa demais na fraqueza dos filhos: crianças sem artes, tão descorçoados como seestivessem com a sezão.
                Vai para o rádio na mesinha-de-cabeceira. Liga. A música chega de mansinho, como um poema desfiando-se:
                “... Eu desisto, não existe esta manhã qu’eu perseguia...”
                Vem, desabotoando o penhoar, numa só tristeza, movendo-se comogata, movendo-se silenciosa, para depois quedar-se frente à cama, numa imobilidade de manhã sem vento. Tira devagarinho. Calada. Com manuseios de bailarina joga a peça em cima da cadeira. Agora, só de camisola, ralinha como papel de seda. Que parece relar-lhe as costas docemente, como as maravilhosas mãos de seu João Divino descendo-lhe até a cintura, antes de comprimirem aquele lugar em que as costas perdem o nome.
                “... Vem, comigo...
                ... meu pedaço de universo é no teu corpo...”
                O Coronel na expectativa. Em grande agitação. Estimulado. As ventas tremulando igual às de um perdigueiro na hora exata de descobrir caça. No maior silêncio. E, num imprevisto, a vê levantar os braços, arrancar tudo, ficar nuinha. Nuinha igual se vem ao mundo. Numa brancura-rosicler, uns seios empinados, feito dois passarinhos reclamando comida. Pois se nem parece que aleitaram, tão rijos como uns de moça-donzela. Coronel Baltazar não mais resistindo, abrindo uma meia fresta da janela, sem fôlego, afogando-se no seco, só por desfrutar tanta formosura. Coronel Baltazar, silibando, perdendo as idéias: lindor maior era na curva da cintura caminhando para o curvilíneo das nádegas, tão bem fornidas que semelhavam visão.
                E parava aí.
                O fosco da outra vidraça não deixa ver-lhe as partes, as pernas. Se tivesse uma pedra, Coronel Baltazar atiraria. Quebraria. Abria horizontes. Sem dúvida nenhuma.
                Foi o tempo de ela estar nessa linda pose, ainda mais linda sabendo-se que não era pose, como se agradecesse o existir, para o seu João Divino: “Ô Deus, um mês sem ele!”
                “... Eu te abraço, corpo imerso no teu corpo...
                ... E em teus braços se unem versos à canção...”
                Seu João Divino, com quem sabia se irradiar tão bem... Aí, como se acordasse, dona Florinda estremece, veste o corpinho de renda, a calcinha e um miserável dum vestido marrom, a esconder-lhe todo o belezim, tendo de bom só o decote em lua. E logo some lá dentro, com certeza a ver se os filhos ainda dormem, cuidar dos afazeres, enquanto o Coronel, na janela escancarada, se comichava inteiro, uivando de pena, como um perdigueiro enxotado na hora de partilhar a caça.

                É na terceira manhã, enquanto bate a gemada para os meninos – gemada recomendada pelo médico -, que dona Florinda “sente” estar sendo observada. De onde?
                É mais um pressentimento que uma certeza, como se, consciente e subconsciente estivessem querelando, um na ingenuidade, outro na ativa percepção do perigo, cuidadoso, como quando se caminha no escuro.
                Está de pé, na varandinha do fundo, lugar que cobre o tanque de lavar e dá acesso à cozinha. Voltada para fora a fim de apanhar a fresca, pois, naquela cidade, o calor de fevereiro começava bravo, com os primeiros albores.
                O mesmo vestido de decote em lua, mostrando o colo e um esboço de reguinho que, como um sumidouro, desaparece corpo adentro. E também porque é hora de pingar o remédio na gemada, umas gotas oleosas e malcheirosas, o tal do fortificante que faz até tísico engordar, pára, olha em roda, procurando pelo quintal. Nada. Nadinha. Então, no seu desvelo maternal, recomeça a bater, plact, plact, plact, até branquear, sumir o cheiro, resumir o gosto, enquanto os seios prisioneiros dançam unidos, ploct, ploct, ploct.
                E aí, sem bem saber por que, começa a sentir um mal-estar tão grande, quase como quando engravidava... Chega a rezar: “Santa Rita, padroeira das causas perdidas, não permita, livrai-me desta, minha santa Rita!, a sentir que o suor ressumado pela testa e pelo colo se gelava: “Não! Não podia ser... Agora tomava a pílula. Tinha garantias”, sossegou.
                E, ao depois de sossegar, fica atenta, procura donde vem aquele aviso, aquela pressão nos nervos que a está deixando sobre brasas, e, num repente, pára com a gemada, o balouçar dos seios, ergue seus ingênuos olhos azuis, dá com o Coronel dependurado na janela, os olhos em posseiro olhar, nariz farejando, boca num arremedo de riso, babujante. Dona Florinda pula para trás, segura o grito, benzendo-se e rebenzendo. Horripilada. Enquanto o homem, lá em cima, desorganizado, manda cumprimento e ofensiva:
                - Senhora dona Florinda, sou o Coronel Baltazar do Sem-Fim, Sete-Matas e outras terras, umseu criado – foi dizendo e anuindo, cheio de sestros. – Qualquer coisa de que necessite, senhora dona Florinda, não se acanhe, que pedido seu será uma ordem... Minha mulher também já teve palavreado comigo, quer ser sua amiga:não é todos os dias que se acomodam vizinhos tão aprovados. Ô Quedinha, larga essa costura aí e vem se apresentar aqui para a vizinha, convidar ela pro terço. Ôôôô Quedinha!
               
                Dali por diante, dona Florinda não conhece mais descanso, sossego de levar sua vida em apatia, dias iguais, encarreiradinhos como as contas de um rosário.
                Se inventa de lavar a cabeça no tanque, na bacia enxaguar com camomila, logo descobre estar sob observância. Nem aguenta segurar sua nervosia: joga fora a água temperada, vai com bacia e tudo. Grande bulha. Uma desordeira: as galinhas e o galo a fugir em alvoroço, o cachorro a latir, os meninos que, na lerdice, ali do lado, babujam a gemada, põem-se a chorar, gemada entornada. E ela, numa exaltação de ânimo, avança, dá-lhes coques e puxões de orelhas, desgrenhada:
                - Coisa ruim! Cês pensam que não vão beber? Velhacos! Bato outra, mas que bebem, bebem!
                Se sai para ir ao bazar, mesmo no calor do meio dia, lá está o Coronel junto à grade rendada de sua mansão:
                - Senhora dona Florinda – diz mesurando como um palhaço no picadeiro – conheço o senhor seu marido há muitos anos. Dele já comprei muita boiada, já fui engabelado naquela sua conversa goiana e, pois, podemos criar estima... laços de amizade: “no comércio conhecidos, em vizinhos muito amigos”.
                E Coronel Baltazar liberta um riso safado, naquela símplice de achar graça nos seus próprios ditos, certamente inventados na besteira do momento, enquanto ela, sorrindo, se esgueira, meio de banda, a idéia resumida:
                - Pois sim, Coronel. Pois sim.
                Mais tarde, costurando no quarto, por causa da luz, defronte à janela. De repente, ergue os olhos. Do alto vem, sem rebouços:
                - Senhora dona Florinda, estava a admirá-la! Sabe que, no cinema da praça, tem uma fita italiana em que a artista é ver a senhora! Os mesmos olhos derrotados, o mesmo corpo de linhas lunares...
                Sente a pele eriçar-se como a duma gata enfezada, estática, como se preparasse um salto.  Então, dona Florinda resolve sorrir, um sorriso velado, para não desfeitear, fingir que não entendeu. E, ao primeiro ensejo, leva a máquina para a copa, onde a luz não é tão sadia, mas a tranquilidade, grande.
                O Coronel acha que ela compreendeu a mensagem, mas não dá mostras para não parecer uma cortesã. Sorri. “Cortesã” era uma palavra que vira numa de suas leiturazinhas pornográficas e, desde então, nunca lhe saíra da idéia. “Cortesã” o Coronel fica a imaginar: “É tímida! Tem receio de parecer oferecida!” E, com esse pensamento, os cabelos de fogo ficam-lhe em pé, e as manchas do rosto mais se acentuam, com um camarão fervendo na casca.
                Enquanto isso, o marido, correndo os fundos de Goiás, arrecada aqui e ali garrotes no ponto de engorda; a cavalo vem tocando sua boiadinha–chapelão abado, cinto de fivelão com cara de boi, trinta e oito na cintura.
                No recesso da casa, dona Florinda, muito apreensiva: “Se o seu João Divino me aparece antes d’eu conseguir cortar as asas destegavião...” E encolhe-se toda a lembrar o jeito do marido, prestando-lhe as despedidas: “Mulher, olho aberto com a gabiruzada da cidade, não te fies nem nos vizinhos que, s’eu souber de alguém a te faltar com o respeito, não respondo por mim”. E, assim falando, assestara a mão na garrucha que lhe ornava a guaiaca, ao mesmo tempo que lhe sorrira companheiro.
                Domingo de noite, nem bem noite, depois do jantarado, dona Florinda está saindo com os filhos para uma voltinha no largo, apanhar a fresca. Meninos apalermados, um na peleja de tramelar a cancela, outro inventando de tirar uma pedrinha da botina, bem em frente à casona do Coronel. E lá vem ele, o biltre, no seu passo de seriema, os braços desfraldados:
                - Senhora dona Florinda, tem coragem de passear assim toda essa lindura sem um Coronel para defende-la? Pelo amor de Deus, senhora dona Florinda, vou acompanha-la, comprar sorvete para os meninos.
                Dona Florinda, em séria cortesia, ia pedir que não s’incomodasse, que resolvera voltar para casa, esquecera o forno aceso, a geladeira aberta, o ferro ligado... Mas os meninos puseram-se a dar pinotes e a berrar:
                - Sorvete, oba! Oba!!!
                E ela, que os conhece de natural tão sombrios, fica perturbada em meio àquela euforia. Quando dá acordo, caminha ao lado do Coronel:
                - Não precisa se incomodar.
                - Será um prazer... Um enorme prazer...
                Apesar de conquistador, Coronel Baltazar sabe “Com quantos paus se faz uma canoa”, e também que “Quem espera sempre alcança...” Carrega o menorzinho dos meninos, o de seis anos, ensinando-lhe uma cambalhota espetacular que o faz acabar pendurado em seu pescoço, rindo até o soluço: “uc... uc... uc...” No bar da esquina, para os dois moleques, dá uma quantidade de sorvetes, chocolates e marias-moles confeitadas de coco. Agora estão lambuzões: os dedos, as bocas, as caras, tudo.
                Na volta, dando as mãos para cada um:
                - Vocês sabem a história do elefante e da formiguinha?
                - Nós não.
                - Era uma vez uma formiguinha muito linda, querendo atravessar um rio muito grande. Veio o elefante e disse: “- Amonta aí na minha cacunda”. Ela subiu pelas pernas do elefante que, sentindo-lhe a carícia, muito s’incomodou...
                - Elefante bobo, né? Uma formiguinha...- diz o maior.
               
                O Coronel riu, ao jeito capadócio:
                - ... E foi instalar-se no pescoço do elefante, numa região muito sensível, o que o deixou nervoso.
                - Daí?
                - Daí o elefante atravessou o rio e, do lado de lá, a formiguinha desceu e agradeceu. “Obrigada...” ao que ele respondeu: “Obrigada nada, vai já-já tirando as calcinhas...”
                Dona Florinda sentiu o sangue a subir, aos borbotões, tintar-lhe as alvuras, toda confusa: “Que atrevimento!” A raiva era tanta que chegava a doer. Depois, mais acalmada, resume: “Fizera mal aceitar andar assim, ao lado do Coronel, um homem sem compostura, mais comentado que boi de Uberaba”. Agora reconhecia.
                Não iriam pensar coisas dela? Aquele povo da esquina, que a está sondando, aquelas duas velhas na janela já não estarão a desfiar o comentário? Fora avisada: povo da cidade usa pôr maldade em tudo.
                Quando passam frente ao açougue, marido e mulher, as cadeiras na calçada, o açougueiro, que já teve quizila com o Coronel por causa dumas vacas, compradas gordas, chegadas magras, maldea:
                - Melhor espiga sempre é para o pior porco.
                Escuta. E ela estremece, como a terra quando vazada pelo trovão. Só então dá acordo de que o Coronel, em voz sussurrada, começou com besteira:
                - Senhora dona Florinda, me perdoe! Preciso desabafar: não aguento mais viver assim, dia inteiro sabendo que está ali... tão à mão... detrás das paredes de sua casinha... tão só... tão tristonha... esse seu olhar, senhora dona Florinda, me deixa louco... pensando em tantas coisas... Parece até que fez mandinga...
                Dona Florinda atarantada, quase tão vermelha quanto a flor do suinã, bota os meninos para dentro, passa para o jardim, bate a cancela. E, os olhos fuzilando azuis, as palavras a jorrar-lhe da boca, como as balas dum pistoleiro:
                - Coronel Baltazar! O senhor pensa que, porque tem dinheiro, vai assim abusando da gente? Poiscomigo o senhor se engana e muito. Sou mulher de acato, também de uma só palavra: se teimar nesse sistema, conto pro seu João Divino e ele lhe ensina a rezar o padre-nosso”...
                E entra, deixando o conquistador em péssima disposição, ruminando um jeito para derrubar aquela fortaleza, pensando: “Um Coronel não pode deixar de ter esse alcanço!”
                Quanto à dona Florinda, naquela noite e nas subsequentes, dormiu pior que quando os meninos mais seu João Divino tinham tido aquela gripe, ainda no sítio. Acordou muito pela madrugada, vítima de sonhos doidos, pesadelos. Em todos, o Coronel fazia presença, ou tentando arrombar-lhe a porta do quarto, ou num campo aberto, correndo atrás dela, os dentes arreganhados feito os dum leão morto de fome. De manhã, as olheiras são-lhe tão profundas que, ao pentear-se frente ao espelho, assusta-se. E, mais tarde, quando chama os meninos para a gemada, nem tem forças para obriga-los a beber. Na cozinha, derreada num tamborete, sem peleja:
                - Quer tomar, toma...
                Nenhum dos dois tomou: gemada foi acabar na lata de lavagem. Ela, que fazia uma questão inteirada em obriga-los a beber aquilo, mais por cauda do fortificante:
                - Não quer, paciência – diz desanimada.
                Quantas vezes não precisara agarrá-los a muque, enfiar-lhes goela abaixo. Hoje:
                - Eu que não vou fazer mais essa vida.
                Porque andava tão afadigada e, também, vamos à verdade, amedrontada, que só lhe vinha uma vontade doida de sumir. Das pontas dos dedos da mão às pontas dos dedos dos pés era uma lassidão.
                Quanto ao carão passado no Coronel, de nada valeu. Nenhum efeito surtiu. Mesmo que entrar por um ouvido e sair pelo outro. Ainda mais afoito, cercando-a na rua a caminho da missa, já sem o “senhora” do cumprimento, já sem o “dona” do respeito:
                - Florinda, Florinda, nem nunca vi deslumbramento de lindeza assim... Tentação mais pojada... Não fuja! Olhe... olhe... não vou desistir enquanto não s’envolver... Vem comigo, Florinda... Te dou casa, televisão, todo conforto, tudo o que mais quiser...
                Que barbaridade! “Desguardou juízo Coronel?” Em nove anos de casada nunca ouvira nada igual, nem semelhante. Florinda, livro de reza na mão, voltou-se para dar resposta positiva, dessas de acabar com assunto, mesmo chama-lo beócio ou bugio, num asco, mas deu foi com dona Quedinha que lá vinha saindo pelo portão, sem um tico de desconfiança:
                - Ôôôô Florinda, que bom encontrar você, minha querida! Estava para lhe pedir a receita daqueles sequilhos que comi na sua casa. Tão miudinhos, tão enxutinhos,
                Quando voltou, se viu no quarto, sem mais nem menos, pôs-se a chorar. Porque estava por um fio, naquele mal-estar de vida, precisando resolver seus problemas... Sem uma ajuda. Pensamentos em confusão numa marola de idéias, a rodar, em sentidos mil: num deles, o marido voltando na mula ruana, tocando o gado, camisa aberta a descortinar o cafuzo do peito, e ecoar: “Êêêêêêê boi!... Êêêêêêê!” Noutro, o importuno! O Coronel, nu em pelo,
o corpo todo sarapantado de nódoas em cor de leite e café-com-leite, macerado e macilento, como um aborto, a correr no seu encalço, e ela, fugindo, pior que dum animal-fera, passava  por  um monturo em cima do qual via os filhos, a bater colheres em canecas, a gritar: “Nóis num qué bebê a gemada! Nóis num qué bebê gemada!.”
                Então, acorda. Senta-se na cama. Esfrega os olhos, naquela hora mais assustados que os duma rolinha amarrada por urutu. Envolvida numa onda de amargura, o coração fazendo seu peito de tambor, tum, tum, tum, chegava a pesar.
                E, pouco a pouco acalmada, sopesa: “Preciso pôr um paradeiro nisso, porque, se seu João Divino chega, essa insensatez armada, fico numa malquerença. É homem, e macho é moral: não quer saber pra que lado o vento deu... Vai logo querendo lavar a honra...”
                Dona Florinda fica ali, os olhos pregados no teto, sem um pisco, temporejando. E de repente, em meio aos seus enovelados se avulta um pensamento que, no começo, era um fio, mas logo em espirituosos avoejos, assenta-se num cantinho de sua mente, e aí se põe a engrossar. Sua idéia era a mais descabida, mas Florinda, mesmo no seu aturdimento, esboça um sorriso: “Como é bom quando o corpo compreende e endossa as cartas da mente!”
                ... Se tiver a ousadia...
                Do momento em que se percebe capaz, sorri, simultaneamente calma. E começa a vestir-se. De janela fechada. Calejada. Senhora de respeito. Fica andando pela casa ainda escurecida, liga o rádio. Programa mantinal:
                                    “numa casa de cabloco,
                                    um é pouco,
                                    dois é bom,
                                    três é demais...”
                Desliga. Se benze: Santa Rita estava mandando aviso “Melhor que se avie”... Antes tarde do que nunca...
                ... Se tivesse a ousadia...
                Às sete horas precisa sair, buscar o pão. Lá está o Coronel; até parece feitiço que não dorme:
                - Florinda, tem pena... Vem...       Dorme comigo por uma vez... Acabar com esse querer... Florinda, se mandar, largo mulher e filhos... Largo tudo.
                E fungava, a cara malhada, transtornada, demudada para o pior num homem, que é quando ele cobiça o que não pode.
                ... Se tivesse a ousadia...
                Então Florinda cria coragem. E, voltando-se sem mais pensar, o rosto tomado pela vivice do projeto:
                - Praz-me, Coronel! – despacha em beneplácito sorriso, sentindo-se capaz de controlar tudo. – Quando voltar, o senhor entra em minha casa, logo atrás de mim...
                O Coronel levou um choque, descorou, quase desfaleceu: poderia viver cem anos, aquilo seria o mais bem vindo do seu século. Não esperava. “Ah! As surpresas que a vida traz!” pensou intrigado: “Fêmea boazuda; escondendo o leite... procurando tapar o sol com a peneira. Mulheres! Todas iguais. Pensara ser das custosas, das de penoso empenho... Se dobrara fácil! Não fosse tão catita e metade da graça se esvaía nas facilidades daquela conquista”. Então Coronel mais resumiu: “Vai ver e até é das que conhece umas safadezazinhas, uns costumes artimanhos, deixando o homem mais enrolado que mosquito em teia de aranha...”
                Coronel Baltazar ficou ali, ralado de desejo, mal podendo esperar. Em estado de carência lastimável. Nunca assim se sentira, num antecipo de gozo, antegozando; um próprio menino-homem que vai pela primeira vez. E baldoso:
                - Florinda... – sussurra no meio da rua, aquecido em alvoroço – minha garça de branca plumagem....
                E sem demora, como atendendo ao apelo, ela aparece na esquina, sem gingados, na sua graça de andar altivo, feito quem vai voar.
                E logo está do seu lado, a abraçar o pacote que cheira a pão, mostrando o branco dos dentes que, de tão brancos, deixam a boca maior. E sem dizer palavra entra, deixa-lhe seu perfume de camomila.
                Depois do embate, o Coronel vem no seu encalço, pelo corredor lateral da cada, onde tantas vezes a cobiçara ao vê-la passar. E, de tão emocionado, nem tem boca para exprimir-se.
                Entram pela cozinha. Tudo ainda escurecido; só lá de dentro vem um alarido de vozes de crianças. Ela vai logo abrindo uma porta que ele sabia ser seu quarto, e antes que pudesse pedir-lhe um beijo, vai dizendo, sem rebuços:
                - O senhor vá tirando a roupa e espere. Vou ali levar o pão para os meninos, entretê-los com uma balas.
                O Coronel pasmou:
                - Tirar a roupa? Assim... logo de cara?
                E ela, com seu olhar de bêbada, orvalhando o Coronel:
                - Pois se não é assim, tem graça?
                - Tem graça não – responde o homem embasbacado, cheio de momices – é que eu...
                Ia dizer que tinha o corpo como a cara, todo almarado em nódoas, mas cala-se, a fiar no tão escuro do cômodo, sorrindo para um pensamentozinho safado: “Deve ser dessas mulheres que conhece o homem pelo faro...”
                E ela se foi.
                Enquanto tira a roupa, a escuta longe, a rir, a convencer os meninos. Ele, que a tivera na conta duma potra bagual... Mulher novidadeira: “Onde já se viu? O homem despir-se em antes da fêmea. Bem previra: égua nenhuma nega quando o cavaleiro se impõe de macho”. O Coronel sorri e vai dobrando a roupa, pondo nos pés da cama, felicitando-se pelo seu dom de análise.
                Foi uns minutos e já os passos voltam, maneiros, como se pisassem orvalho. E, de repente, ela abre a porta, acende a luz. Traz um filho em cada mão, no rosto uma expressão gaiata. E, apontando o Coronel, nu em pêlo no meio do quarto, ansiante, o corpo-pampa, um monstro que assusta os meninos, os meninos a tremerem. Então, ela diz rasgado:

                - Ôces trata de beber direitinho a gemada todo dia, senão olha, estou avisando: vão acabar assim pintados como o Coronel.




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