Cheguei exausto. Nem a alegria dos cães conseguiu me
contagiar. Nas minhas reflexões eu estava assustado, sem entender o mundo ao
meu redor.
Entrei. Liguei o aparelho de som e Andrés Segovia iniciou
o Recital de Bach. Abri um livro de Fernando Pessoa e encontrei Tabacaria.
“Não sou nada. Nunca serei nada. Não
posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.”, dizia o poeta.
Ah, desgraçado! Abriu em mim a ferida que revelou a minha
infinita pequenez. Sinto que, a cada dia que passa, a minha dívida com o mundo
aumenta. Mesmo assim o poeta mostrou-me que é permitido sonhar. Sempre é
possível buscar um caminho melhor.
Mas o poeta ainda não estava contente e atirava: “Que sei eu do que serei, eu que não sei
o que sou? Ser o que penso?
Mas penso ser tanta coisa! E
há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Gênio? Neste momento cem mil
cérebros se concebem em sonho gênios como eu. E a história não marcará, quem
sabe?, nem um. Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras”.
Que lindo golpe na vaidade, grande poeta!
“Não, não creio em mim. Em todos os
manicômios há doidos malucos com tantas certezas! Eu, que não tenho nenhuma
certeza, sou mais certo ou menos certo?”
O que é certo, poeta? O que é
normal? É o que a sociedade determina? É o que se torna hábito? É o
individualismo tecnicista, incentivado pela mídia, com seu efeito danoso sobre
a afetividade entre os seres humanos? É isso que está aí aos nossos olhos?
O poeta não me ouvia e continuava: “Fiz de mim o que não soube,
e o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado. Conheceram-me logo por quem não era e não
desmenti, e perdi-me. Quando
quis tirar a máscara, estava
pegada à cara. Quando a tirei e
me vi ao espelho, já tinha envelhecido.”
Agora calou fundo! Então, a
maior falsidade é o não reconhecimento da mesma? É acreditar na própria
máscara?
Explique-me,
poeta, como poderemos viver sem nossas máscaras? Como não oferecer ao mundo
nossos eus falsos? Ao tentarmos mostrar os rostos verdadeiros, arrancando as
máscaras com força, não evitaremos sangrar. E será um sangue podre, fétido, que
ninguém suportará se aproximar. Quem nos perdoaria as vilezas reveladas nessa
ferida sangrante e nos limparia do sangue sujo deixando transparecer a
verdadeira face? Seria essa pessoa o amigo que nos traria o amor incondicional?
Seria esse o verdadeiro exercício de aceitação do próximo?
Não precisa responder, poeta. Mesmo porque você já não
está mais entre nós. E Segovia já não toca mais. E eu, que me achava maduro, já
não tenho tanta certeza.
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