Eram sete horas quando Márcia Maria
chegou para o funeral. Desceu do carro
ainda tremula. O marido e os filhos desceram primeiro e já carregavam as
malas para dentro da casa, quando Márcia Maria teve uma vertigem. Não havia
comido nada desde que saíra de casa em Miliares, quando se recuperou, sentiu
uma vaga náusea acompanhada de uma sensação incômoda.
Algumas pessoas olhavam-na do topo da
escada. Márcia Maria, sabia que subir eram o desafio e acusação que se impunham
diante dela. Contudo, agora, tudo havia se consumado. Nada mais poderia fazer.
Nem queria fazer. Enquanto subia, sentiu o delicado sal do remorso, vertido por
uma lágrima, mas só por um instante.
Logo à primeira vista, a irmã mais
velha, com o marido e filhos. O olhar firme da irmã, era uma prova de que não
precisava dela. Márcia Maria, abaixou os olhos recorrendo ao chão enquanto
avançava com passos apressados. Já no topo da escada , levou o corpo de leve e
debruçou-se no parapeito da varanda.Houve um momento de ansiedade, várias
pessoas correram em sua direção. A prima Angélica foi quem falou primeiro:
Sente-se mal prima?
_ Estou de estomago vazio _ respondeu,
Márcia Maria.
_ Então vamos primeiro à cozinha tomar
um copo de leite.
Márcia Maria mal podia levar o copo de leite
à boca. Trêmula, sentia uma ausência que invadia todo o seu corpo. Uma alegria.
Como se fosse uma imensa claridade.
_ Como está ela? _ inquiriu Márcia
Maria numa freada súbita.
_ Como uma santa _ respondeu a prima,
ingenuamente.
Márcia Maria sentiu remorsos por
haver-se violentado. Não devia ter vindo. No entanto precisava ter certeza.
Sim. Fora por isto que viera. A boca tinha o gosto amargo, um gosto de sangue.
Realmente, ela nunca amou a mãe. Desde pequena a mãe fizera de sua vida um
caliginoso inferno. Até em sonhos a mãe entrava como se fosse um cão.
E agora como seria sua
fisionomia? Márcia Maria sentiu uma certa curiosidade.Teve vontade de vê-la.
Mas conteve-se. Não havia pressa, teria a noite toda. Permitiu aos seus
pensamentos que se desviassem para o passado.
“... Como larvas te devorando em carne
viva...” Este fora o fragmento de uma conversa que tivera com a mãe pouco antes
de se casar. Até hoje lhe queimavam o peito.
A mãe sempre tivera no rosto uma
expressão má não contida. A ira saía pelos olhos que eram sempre hirtos. “
Agora morta “, pensava Márcia Maria. Meu desejo, nesse momento, seria
interromper tudo para cantar, rir, vibrar, vibrar de tanta felicidade!”
_Sente-se melhor_ perguntou Angélica?
_Bem melhor, respondeu Márcia Maria.
_Quer ir até a sala?_ perguntou a prima.
Com os olhos frios, quase que
entorpecidos, Márcia Maria, olhou para Angélica e respondeu: _ Ainda não.
Para Angélica aquela recusa poderia ser
uma espera para evitar uma descarga maior de emoções. Afinal ela era filha e
não estava presente quando a mãe faleceu, devia estar sofrendo mais do que
todos.
Márcia Maria fechou os olhos enquanto
procurava acomodar-se melhor na cadeira. Pessoas entravam, saiam, mas era indiferente a tudo
que ela sentia. O passado era seu núcleo e tudo gravitava em torno dele. Via
cada cena com curiosidade e fascínio. Já não sentia mais medo. Ela que nunca
havia usufruído as coisas boas da vida, agora estava ali, liberta de tudo.
“ A verdade está justamente aqui, na
liberdade que nunca tive, e que jamais poderei compreender porque não” ,
pensava. As formas deslizavam diante dos olhos de Márcia Maria: A via crucis. O
medo do dramático ou penoso. Os anseios, as frustrações, os sufocamentos. Agora
tudo, tudo era pesado, medido.
Márcia Maria, suspirou profundamente.
Não se podia dizer que tivesse amado
aquela mulher, nem pelo menos um dia. Poder-se-ia dizer que havia entre as duas
uma ligação puramente sanguínea. Nascera de seu ventre. Não havia nenhuma
afinidade. Repugnância, sim.
Márcia Maria ressuscitava de um
assassinato o mais profundo. Agora estava ali
sentada e sendo. Olhava as pessoas à sua volta, mas não via coisa
alguma, procurava juntar todos os
fragmentos. Não estava com fome porque quando soube da morte encheu-se de
satisfação. Não estava com sono porque precisava saborear muito bem aquele
momento. Não tinha nenhum desejo porque o único acabava de se realizar.
Aquele era um dia que havia pouco para
ver e muito para sentir. Caía a mão do destino; pesada e fofa, sobre os
sentimentos hostis de raiva ou mesmo de ódio.
_Sente-se melhor? Perguntou o marido de
Márcia Maria, sentando-se ao lado dela.
_Sim. Respondeu-lhe, desviando os olhos
dele.
O filho caçula veio em seguida e deitou
a cabeça no colo da mãe; esta lhe fez um carinho.
Da sala vinha a prima Angélica. Com a
voz embargada pelas lágrimas perguntou-lhe mais uma vez:
_Gostaria de ir vê-la agora?
_Não. Respondeu Márcia Maria, sentindo a
bile subir-lhe à garganta.
Márcia Maria estava pensando. Da sala
mortuária faziam-se preces e oferendas com alguns excessos, as discussões sobre
o trajeto funeral, o telefone tocando, nada disso a incomodava. Estava pensando
no que tinha sido sua vida até então. E quando voltasse a casa agradeceria aos
deuses as bênçãos recebidas.Seria necessário! Na verdade havia esperado a vida
toda por este momento de felicidade.
Com nojo pensou na hora da despedida e
no momento de beijar o rosto.Beijaria com pressa, ou beijaria com os olhos, ou
não beijaria. Também o beijo tinha sido uma substância ausente. Poderia
despedi-lo sem ele.
Toda aquela gente fazia ela sentir uma
imensa alegria, embora fosse ainda uma alegria infernal. Márcia Maria
precisaria de algum tempo para reorganizar a esperança. Levantou-se e foi até ao jardim. Queria ficar sozinha, era uma estranha
naquele meio. O interior do jardim estava fresco e escuro, um conforto
agradável.Não havia flores, claro!
Foram colhidas e estavam na
sala ornamentando o corpo rigorosamente.Como todas as flores na sua grandiosa
indiferença.
Márcia Maria sentou-se num banco ao
lado de um pé de hibisco vermelho deixando-se resvalar para o passado.O jardim
estava apinhado de fantasmas que procuravam ajudá-la a relembrar-se do que se
passara durante anos.
De repente o passado começou a
fundir-se com o presente.
“ Não há motivo para depressão. Ela já
se foi”, pensou. Márcia Maria percebeu que estivera prendendo a respiração até
aquele momento. Sua vontade era gritar de alegria. Olhou ao redor, afim de
certificar-se de que ninguém poderia
vê-la, então espichou-se no banco num estado de êxtase. Todo o corpo vibrava,
nos lábios um delicioso sorriso.
Obrigada, meu Deus_ disse Márcia Maria,
sentindo-se imensamente grata, agradeceu mais uma vez baixinho._ Obrigada.
Márcia Maria estava contemplando as
estrelas faiscando no vasto céu, quando Angélica apareceu e disse: _Querida,
todas as flores foram colhidas, você gostaria de...
Angélica foi interrompida bruscamente.
_ Ora, cale essa boca. Angélica imaginou o quanto à prima deveria estar
transtornada, pois havia nela uma extrema dignidade, uma serena indiferença. Então achou melhor
não argumentar mais. Deixou o jardim em seguida.
Eram quatro horas da madrugada Márcia
Maria, caminhava por entre os canteiros quando, num repente, deixou o jardim
entrando pela da copa, onde a maioria dos parentes tomavam chá com torradas,
quando Angélica viu a prima entrar na copa disse em voz baixo para a pessoa que
estava sentada ao seu lado.
_ Márcia Maria, não reconheceu a morte
da mãe ainda. Gostaria de ajudá-la, disse Glenda, amiga de Márcia Maria,
ouvindo o comentário, no entanto, não sei como.
Márcia Maria não se dirigiu a nenhuma
das pessoas que ali se encontravam.Com passos largos apressados cortou a sala
de jantar chegando a sala mortuária. Quando entrou, houve um silencio súbito e
respeitoso.
Ana, a única tia viva, estava junto ao
caixão. A mão sardenta, um pouco tremula, arranjava com delicadeza a gola do
vestido da sobrinha.
Ninguém te amou mais do que eu!
Gritou Márcia Maria, debruçando em
cima do caixão e beijando desesperadamente as faces mortas da mãe.
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