O Funeral- Thereza Freirez


    Eram sete horas quando Márcia Maria chegou para o funeral. Desceu do carro  ainda tremula. O marido e os filhos desceram primeiro e já carregavam as malas para dentro da casa, quando Márcia Maria teve uma vertigem. Não havia comido nada desde que saíra de casa em Miliares, quando se recuperou, sentiu uma vaga náusea acompanhada de uma sensação incômoda.
    Algumas pessoas olhavam-na do topo da escada. Márcia Maria, sabia que subir eram o desafio e acusação que se impunham diante dela. Contudo, agora, tudo havia se consumado. Nada mais poderia fazer. Nem queria fazer. Enquanto subia, sentiu o delicado sal do remorso, vertido por uma lágrima, mas só por um instante.
    Logo à primeira vista, a irmã mais velha, com o marido e filhos. O olhar firme da irmã, era uma prova de que não precisava dela. Márcia Maria, abaixou os olhos recorrendo ao chão enquanto avançava com passos apressados. Já no topo da escada , levou o corpo de leve e debruçou-se no parapeito da varanda.Houve um momento de ansiedade, várias pessoas correram em sua direção. A prima Angélica foi quem falou primeiro:
    Sente-se mal prima?
     _ Estou de estomago vazio _ respondeu, Márcia Maria.
    _ Então vamos primeiro à cozinha tomar um copo de leite.
    Márcia Maria mal podia levar o copo de leite à boca. Trêmula, sentia uma ausência que invadia todo o seu corpo. Uma alegria. Como se fosse uma imensa claridade.
    _ Como está ela? _ inquiriu Márcia Maria numa freada súbita.
     _ Como uma santa _ respondeu a prima, ingenuamente.
    Márcia Maria sentiu remorsos por haver-se violentado. Não devia ter vindo. No entanto precisava ter certeza. Sim. Fora por isto que viera. A boca tinha o gosto amargo, um gosto de sangue. Realmente, ela nunca amou a mãe. Desde pequena a mãe fizera de sua vida um caliginoso inferno. Até em sonhos a mãe entrava como se fosse um cão.
E agora como seria sua fisionomia? Márcia Maria sentiu uma certa curiosidade.Teve vontade de vê-la. Mas conteve-se. Não havia pressa, teria a noite toda. Permitiu aos seus pensamentos que se desviassem para o passado.   
    “... Como larvas te devorando em carne viva...” Este fora o fragmento de uma conversa que tivera com a mãe pouco antes de se casar. Até hoje lhe queimavam o peito.
    A mãe sempre tivera no rosto uma expressão má não contida. A ira saía pelos olhos que eram sempre hirtos. “ Agora morta “, pensava Márcia Maria. Meu desejo, nesse momento, seria interromper tudo para cantar, rir, vibrar, vibrar de tanta felicidade!”
     _Sente-se melhor_ perguntou Angélica?
    _Bem melhor, respondeu Márcia Maria.
    _Quer ir até a sala?_ perguntou a prima.
    Com os olhos frios, quase que entorpecidos, Márcia Maria, olhou para Angélica e respondeu: _ Ainda não.
    Para Angélica aquela recusa poderia ser uma espera para evitar uma descarga maior de emoções. Afinal ela era filha e não estava presente quando a mãe faleceu, devia estar sofrendo mais do que todos.
      Márcia Maria fechou os olhos enquanto procurava acomodar-se melhor na cadeira. Pessoas  entravam, saiam, mas era indiferente a tudo que ela sentia. O passado era seu núcleo e tudo gravitava em torno dele. Via cada cena com curiosidade e fascínio. Já não sentia mais medo. Ela que nunca havia usufruído as coisas boas da vida, agora estava ali, liberta de tudo.
    “ A verdade está justamente aqui, na liberdade que nunca tive, e que jamais poderei compreender porque não” , pensava. As formas deslizavam diante dos olhos de Márcia Maria: A via crucis. O medo do dramático ou penoso. Os anseios, as frustrações, os sufocamentos. Agora tudo, tudo era pesado, medido.  
    Márcia Maria, suspirou profundamente.
    Não se podia dizer que tivesse amado aquela mulher, nem pelo menos um dia. Poder-se-ia dizer que havia entre as duas uma ligação puramente sanguínea. Nascera de seu ventre. Não havia nenhuma afinidade. Repugnância, sim.
        Márcia Maria ressuscitava de um assassinato o mais profundo. Agora estava ali   sentada e sendo. Olhava as pessoas à sua volta, mas não via coisa alguma, procurava juntar  todos os fragmentos. Não estava com fome porque quando soube da morte encheu-se de satisfação. Não estava com sono porque precisava saborear muito bem aquele momento. Não tinha nenhum desejo porque o único acabava de se realizar.
    Aquele era um dia que havia pouco para ver e muito para sentir. Caía a mão do destino; pesada e fofa, sobre os sentimentos hostis de raiva ou mesmo de ódio.
    _Sente-se melhor? Perguntou o marido de Márcia Maria, sentando-se ao lado dela.               
    _Sim. Respondeu-lhe, desviando os olhos dele.   
    O filho caçula veio em seguida e deitou a cabeça no colo da mãe; esta lhe fez um carinho.
    Da sala vinha a prima Angélica. Com a voz embargada pelas lágrimas perguntou-lhe mais uma vez:
    _Gostaria de ir vê-la agora?
    _Não. Respondeu Márcia Maria, sentindo a bile subir-lhe à garganta.
    Márcia Maria estava pensando. Da sala mortuária faziam-se preces e oferendas com alguns excessos, as discussões sobre o trajeto funeral, o telefone tocando, nada disso a incomodava. Estava pensando no que tinha sido sua vida até então. E quando voltasse a casa agradeceria aos deuses as bênçãos recebidas.Seria necessário! Na verdade havia esperado a vida toda por este momento de felicidade.
    Com nojo pensou na hora da despedida e no momento de beijar o rosto.Beijaria com pressa, ou beijaria com os olhos, ou não beijaria. Também o beijo tinha sido uma substância ausente. Poderia despedi-lo sem ele.
     Toda aquela gente fazia ela sentir uma imensa alegria, embora fosse ainda uma alegria infernal. Márcia Maria precisaria de algum tempo para reorganizar a esperança. Levantou-se e foi até ao jardim. Queria ficar sozinha, era uma estranha naquele meio. O interior do jardim estava fresco e escuro, um conforto agradável.Não havia flores, claro!
    Foram colhidas e estavam na sala ornamentando o corpo rigorosamente.Como todas as flores na sua grandiosa indiferença.
    Márcia Maria sentou-se num banco ao lado de um pé de hibisco vermelho deixando-se resvalar para o passado.O jardim estava apinhado de fantasmas que procuravam ajudá-la a relembrar-se do que se passara durante anos.
    De repente o passado começou a fundir-se com o presente.
    “ Não há motivo para depressão. Ela já se foi”, pensou. Márcia Maria percebeu que estivera prendendo a respiração até aquele momento. Sua vontade era gritar de alegria. Olhou ao redor, afim de certificar-se  de que ninguém poderia vê-la, então espichou-se no banco num estado de êxtase. Todo o corpo vibrava, nos lábios um delicioso sorriso.
    Obrigada, meu Deus_ disse Márcia Maria, sentindo-se imensamente grata, agradeceu mais uma vez baixinho._ Obrigada.
    Márcia Maria estava contemplando as estrelas faiscando no vasto céu, quando Angélica apareceu e disse: _Querida, todas as flores foram colhidas, você gostaria de...
    Angélica foi interrompida bruscamente. _ Ora, cale essa boca. Angélica imaginou o quanto à prima deveria estar transtornada, pois havia nela uma extrema dignidade,    uma serena indiferença. Então achou melhor não argumentar mais. Deixou o jardim em seguida.
    Eram quatro horas da madrugada Márcia Maria, caminhava por entre os canteiros quando, num repente, deixou o jardim entrando pela da copa, onde a maioria dos parentes tomavam chá com torradas, quando Angélica viu a prima entrar na copa disse em voz baixo para a pessoa que estava sentada ao seu lado.
    _ Márcia Maria, não reconheceu a morte da mãe ainda. Gostaria de ajudá-la, disse Glenda, amiga de Márcia Maria, ouvindo o comentário, no entanto, não sei como. 
    Márcia Maria não se dirigiu a nenhuma das pessoas que ali se encontravam.Com passos largos apressados cortou a sala de jantar chegando a sala mortuária. Quando entrou, houve um silencio súbito e respeitoso.
    Ana, a única tia viva, estava junto ao caixão. A mão sardenta, um pouco tremula, arranjava com delicadeza a gola do vestido da sobrinha.
    Ninguém te amou mais do que eu!
    Gritou Márcia Maria, debruçando em cima do caixão e beijando desesperadamente as faces mortas da mãe.




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