Zé
Bento, um caboclo matuto do calcanhar rachado, teve na vida muitos percalços,
mas o mais triste e muito doído foi o da perda da sua mãe, prematuramente.
Nesta era da tecnologia, de encompridar a morte ela teve uma vida muito curta.
Morreu com 52 anos e deixou seu filho primogênito - numa prole de nove - com
34.
Agora,
com 85 anos o sofrido filho lembra-se da sua mãe com a clareza de quando tinha
34: como ela faleceu, repentinamente, num transe de apenas 15 minutos. Foi o
tempo necessário de quando estava preparando o almoço, colocando os pratos e
talheres na mesa e o momento de atender uma pessoa que batera palmas no portão
de entrada e gritara, ô de casa?
-
A Senhora é a mãe de... perguntara aflita.
-
Sim, sou eu; o que aconteceu com minha filha caçula?
-
Ela está lá em casa, muito mal, após abortar um neto seu. Chame um médico,
urgente!
Pronto,
foi o bastante para a mãe de Zé Bento desmaiar ali mesmo na porta de casa, tal
foi o seu desgosto por tão infausta notí-cia. Ela gozava de boa saúde, mas seu
coração não suportou o impacto da notícia sangrado que foi pelo punhal da
desilusão. Era pessoa religiosa, mãe amorosa e dedicada, esposa fiel e
prendada, o mais alto exemplo de mulher, em todos os sentidos. Seu coração, de
tanto bater apanhou naquele momento, fulminado pelo desgosto da mais alta
ignomínia familiar.
Hoje,
neste dia das mães de dois mil e dezesseis, Zé Bento reflete e, extasiado viu e
sentiu todas as passagens da educação que recebeu de Dona Cacilda. Foi como se
estivesse assistindo a um DVD refletindo todas as cenas de sua vida, desde seu
primeiro ano de vida. Os conflitos das tias com a mãe, cada uma querendo ser
mais benquista do que a outra. Puro receio de perder as gracinhas da criança
amada dedicando mais afeto à mãe do que às tias, ou oferecendo mais amor às
tias do que à mãe.
Foi
nesta sensatez que Zé Bento recordou, com saudades, de dois episódios da
infância que marcaram profundamente sua formação de caráter pela vida afora.
Narrou, ele mesmo, numa recepção comemorativa deste segundo domingo de maio de
2016 na casa da neta. É ele mesmo quem, emocionado, vai contar.
“Eu
com seis anos de idade fui com meu tio à cidade, distante 25 kilômetros da zona
rural, onde morávamos dentro de uma mata virgem, composta de vários animais
ferozes. Meu tio foi comprar fogos de artifício para as festas juninas,
comemoradas todos os anos em 24 de junho. Na loja, enquanto o balconista
separava as bombinhas e os rojões num determinado momento, sem que fosse visto
pelo vendedor, coloquei uma dúzia de foguetinhos no pacote. Meu tio percebeu
minha malandragem, mas não me advertiu no momento. De volta para casa, viajando
em um carrinho de tração animal, fui elogiado e exaltado até com estardalhaço
pelo irmão do meu pai como uma criança ladina. Chegando em casa, com o mesmo
alvoroço ele contou para mamãe a minha traquinagem, exaltando-me como “*criança
índigo”. Dona Cacilda, que estava sentada, pôs-se de pé repentinamente,
caminhou para perto – e diante - do meu tio, altivamente com o pé esquerdo na
frente e com as duas mãos na cintura bradou: “cumpadi Leontra, o sinhô tá
ensinanu meu fio roubá?” Esta frase até hoje ainda ecoa nos meus ouvidos como
um murmúrio do mar.
O
segundo episódio ocorreu na mesma fazenda onde aconteceu o primeiro, porém eu
já tinha 10 anos. Dentre as nove famílias de moradores na povoação, destacava a
do Senhor Eusupério casado com Dona Cacilda, de cujo consórcio nasceu uma prole
de mais seis rebentos. Eu sou o mais velho e era o tipo do garoto preferido das
meninas, o “Don Juan” daquela paragem. Além do atrativo feminino para os
namoricos despertava paixões fervorosas nas meninas mais assanhadas, a ponto de
causar desavenças entre elas na disputa do príncipe encantado.
No
centro da colônia localizava a residência de Euzupério com meu dormitório na
frente. A frente da residência e uma banca de bater o arroz na colheita foram
os fatores interessantes para o cenário onde se desenvolvia o meu colóquio
amoroso com a mais assanhada das meninas. Naquelas propícias noites de lua
cheia clareava as trevas soturnas da noite desfazendo a escuridão para alumiar
o ambiente de alcova do casal inocente. Naquela noite de abril namorávamos em
cima da banca e apreciávamos a beleza natural daquele luar prateado. Só faltava
um lago para a lua beijar a água límpida e refletir como espelho a imagem dos
dois bem juntinhos e enlevados como o poeta quando canta a beleza da amada.
Numa
determinada noite, a mamãe foi visitar uma comadre e lá demorou mais do que o
costumeiro e em casa a família foi dor-mir mais cedo para se refazer do cansaço
produzido pelo trabalho árduo da roça. Estando, assim, unidos os dois
pombinhos, sequer pensávamos em mais nada afora aquela prazerosa situação.
Encon-trávamos, de tal modo enlevados como quê absortos em um planeta distante,
criado só para nós e protegidos como em uma redoma de aço. Não conversávamos,
pois os olhares e gestos exprimiam mais que qualquer palavra. A um simples
movimento do corpo significava mais que um conto de fadas e a um singelo olhar
morteiro comunicava mais que os poetas românticos. Somente os dois corpos e
suas mãos tagarelavam como maritacas na roça de milho. As minhas começava
fazendo cafuné e passeava pelo corpo dela até os dedos coçando bicho-de-pé
entalado. Neste trânsito corporal, instintivamente, eu enfiava o dedinho nos
ouvidos dela fazendo cócegas; amassava os seios em formação para sentir a
maciez amamentadora; tocava nos mamilos ainda em botão, sem saber da
estimulação provocada; afagava os genitais tão inocentes sem jamais conhecer o
resultado daquele afago; alisava tocando em todo aquele corpo imaculado sem
malícia de modos tão carinhosos a provocar arrepios de sensações ignoradas.
Naquele transe de gozo e de medo apertávamos os corpos tão fortemente que
sentíamos o pulsar do sangue nas batidas dos corações parecendo quererem saltar
pela garganta. Quanto mais colados estavam nossos corpos mais entrelaçávamos os
braços e pernas, de maneira tal aparecer um só. À medida que ia lhe cariciando
com as mãos, com a boca eu a beijava na face numa suavidade tão macia que mal
sentia a pele fina e rosada dela. Naquele esfrega-esfregaa menina entrava em
devaneios e a bolina chegava a um gozo ignorado muito intenso. Por minha vez eu
também sentia um prazer tão gozoso e intenso a me provocar arrepios. Tudo
aquilo deixávamos muito intrigados e confusos. Era algo incompreensível para as
nossas mentes sem culpa, conhecer a transformação dos nossos corpos com a
chegada dos primeiros hormônios – testosterona para ele e progesterona para ela
– sinal da aptidão para procriar. A puberdade. Lá do alto, como quê abençoando
o colóquio amoroso a lua parecia apagar a sua luz momentaneamente para esconder
aquelas duas criaturas amantes na inocência contra olhares alheios. Daquela
maneira permanecemos muitos minutos alheios a tudo o que nos rodeavam e o tempo
parecia uma eternidade, até que... pelas vinte e duas horas quando o astro
noturno na posição equatorial, alumiava-nos pela metade, passava por ali
defronte aos dois, Dona Cacilda. Naquele instante, meditávamos ainda sobre o
acontecido conosco que, extasiados, nada concluímos. Ignorávamos ser aquele
transe a passagem da meninice inocente para a de jovem, perigosa. Daquela
ocorrência dava-se o início de sermos homem e mulher. Ainda continuamos
juntinhos na presença de alguém a nos espionar sem percebermos. Eu assustei-me
com o vulto imóvel de Dona Cacilda e com sua voz suave e meiga a dizer-me: -
“Zezinho, a mamãe não gosta de menino lutrido” e prosseguiu rumo à porta da
cozinha. Este era o apelido familiar com que era tratado.No mesmo instante foi
desfeito o colóquio amoroso, indo cada um para sua casa. Eu entrei fui direto
para a cama e naquela noite não dormi, em face da reprimenda da mamãe e remoí a
noite toda na imaginação: “não gosta de menino lutrido!, não gosta de menino...
lutrito” e aquilo martelava nos meus ouvidos: “menino lutrido!!?, menino
lutrido!!?” e ecoava em todo o meu SER: “LUTRI-DO!!!?” A frase inteira
pronunciada: “Zezinho, a mamãe não gosta de menino lutrido” ribombava em meu
corpo estremecido como trovão nos grotões ao pé da serra nas noites
tempestuosas. Amanheci adoentado, efeito intenso da correção materna. Era a voz
da consciência ouvida com tanta repulsa que ensurdeceu-me com mil repetições:
menino lutrido; menino lutrico; menino, lutrido; lutrido...Não atinava como fui
atingido com tanta intensidade por uma frase tão simples dita pela minha mãe em
um momento tão bonito de amor. Procurei saber o que queria dizer a palavra
lutrido e não encontrei o seu significado em nenhum dicionário. Entretanto,
passei a entender quando concluí a faculdade que fora um menino libidinoso”.
Mais tarde, com a compreensão da vida, já na terceira idade, descobri o porquê
da minha timidez no trato, não só com as namoradas, mas também com a sociedade
em geral”. Hoje Zé Bento, já carcomido, tem todas as imagens da sua existência
projetadas na tela da vida a serem conhecidas das mães que ainda nos estão
presentes.
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