Homenagem à mãe que se foi- José Antônio de Azevedo



Zé Bento, um caboclo matuto do calcanhar rachado, teve na vida muitos percalços, mas o mais triste e muito doído foi o da perda da sua mãe, prematuramente. Nesta era da tecnologia, de encompridar a morte ela teve uma vida muito curta. Morreu com 52 anos e deixou seu filho primogênito - numa prole de nove - com 34.
Agora, com 85 anos o sofrido filho lembra-se da sua mãe com a clareza de quando tinha 34: como ela faleceu, repentinamente, num transe de apenas 15 minutos. Foi o tempo necessário de quando estava preparando o almoço, colocando os pratos e talheres na mesa e o momento de atender uma pessoa que batera palmas no portão de entrada e gritara, ô de casa?
- A Senhora é a mãe de... perguntara aflita.
- Sim, sou eu; o que aconteceu com minha filha caçula?
- Ela está lá em casa, muito mal, após abortar um neto seu. Chame um médico, urgente!
Pronto, foi o bastante para a mãe de Zé Bento desmaiar ali mesmo na porta de casa, tal foi o seu desgosto por tão infausta notí-cia. Ela gozava de boa saúde, mas seu coração não suportou o impacto da notícia sangrado que foi pelo punhal da desilusão. Era pessoa religiosa, mãe amorosa e dedicada, esposa fiel e prendada, o mais alto exemplo de mulher, em todos os sentidos. Seu coração, de tanto bater apanhou naquele momento, fulminado pelo desgosto da mais alta ignomínia familiar.
Hoje, neste dia das mães de dois mil e dezesseis, Zé Bento reflete e, extasiado viu e sentiu todas as passagens da educação que recebeu de Dona Cacilda. Foi como se estivesse assistindo a um DVD refletindo todas as cenas de sua vida, desde seu primeiro ano de vida. Os conflitos das tias com a mãe, cada uma querendo ser mais benquista do que a outra. Puro receio de perder as gracinhas da criança amada dedicando mais afeto à mãe do que às tias, ou oferecendo mais amor às tias do que à mãe.
Foi nesta sensatez que Zé Bento recordou, com saudades, de dois episódios da infância que marcaram profundamente sua formação de caráter pela vida afora. Narrou, ele mesmo, numa recepção comemorativa deste segundo domingo de maio de 2016 na casa da neta. É ele mesmo quem, emocionado, vai contar.
“Eu com seis anos de idade fui com meu tio à cidade, distante 25 kilômetros da zona rural, onde morávamos dentro de uma mata virgem, composta de vários animais ferozes. Meu tio foi comprar fogos de artifício para as festas juninas, comemoradas todos os anos em 24 de junho. Na loja, enquanto o balconista separava as bombinhas e os rojões num determinado momento, sem que fosse visto pelo vendedor, coloquei uma dúzia de foguetinhos no pacote. Meu tio percebeu minha malandragem, mas não me advertiu no momento. De volta para casa, viajando em um carrinho de tração animal, fui elogiado e exaltado até com estardalhaço pelo irmão do meu pai como uma criança ladina. Chegando em casa, com o mesmo alvoroço ele contou para mamãe a minha traquinagem, exaltando-me como “*criança índigo”. Dona Cacilda, que estava sentada, pôs-se de pé repentinamente, caminhou para perto – e diante - do meu tio, altivamente com o pé esquerdo na frente e com as duas mãos na cintura bradou: “cumpadi Leontra, o sinhô tá ensinanu meu fio roubá?” Esta frase até hoje ainda ecoa nos meus ouvidos como um murmúrio do mar.
O segundo episódio ocorreu na mesma fazenda onde aconteceu o primeiro, porém eu já tinha 10 anos. Dentre as nove famílias de moradores na povoação, destacava a do Senhor Eusupério casado com Dona Cacilda, de cujo consórcio nasceu uma prole de mais seis rebentos. Eu sou o mais velho e era o tipo do garoto preferido das meninas, o “Don Juan” daquela paragem. Além do atrativo feminino para os namoricos despertava paixões fervorosas nas meninas mais assanhadas, a ponto de causar desavenças entre elas na disputa do príncipe encantado.
No centro da colônia localizava a residência de Euzupério com meu dormitório na frente. A frente da residência e uma banca de bater o arroz na colheita foram os fatores interessantes para o cenário onde se desenvolvia o meu colóquio amoroso com a mais assanhada das meninas. Naquelas propícias noites de lua cheia clareava as trevas soturnas da noite desfazendo a escuridão para alumiar o ambiente de alcova do casal inocente. Naquela noite de abril namorávamos em cima da banca e apreciávamos a beleza natural daquele luar prateado. Só faltava um lago para a lua beijar a água límpida e refletir como espelho a imagem dos dois bem juntinhos e enlevados como o poeta quando canta a beleza da amada.
Numa determinada noite, a mamãe foi visitar uma comadre e lá demorou mais do que o costumeiro e em casa a família foi dor-mir mais cedo para se refazer do cansaço produzido pelo trabalho árduo da roça. Estando, assim, unidos os dois pombinhos, sequer pensávamos em mais nada afora aquela prazerosa situação. Encon-trávamos, de tal modo enlevados como quê absortos em um planeta distante, criado só para nós e protegidos como em uma redoma de aço. Não conversávamos, pois os olhares e gestos exprimiam mais que qualquer palavra. A um simples movimento do corpo significava mais que um conto de fadas e a um singelo olhar morteiro comunicava mais que os poetas românticos. Somente os dois corpos e suas mãos tagarelavam como maritacas na roça de milho. As minhas começava fazendo cafuné e passeava pelo corpo dela até os dedos coçando bicho-de-pé entalado. Neste trânsito corporal, instintivamente, eu enfiava o dedinho nos ouvidos dela fazendo cócegas; amassava os seios em formação para sentir a maciez amamentadora; tocava nos mamilos ainda em botão, sem saber da estimulação provocada; afagava os genitais tão inocentes sem jamais conhecer o resultado daquele afago; alisava tocando em todo aquele corpo imaculado sem malícia de modos tão carinhosos a provocar arrepios de sensações ignoradas. Naquele transe de gozo e de medo apertávamos os corpos tão fortemente que sentíamos o pulsar do sangue nas batidas dos corações parecendo quererem saltar pela garganta. Quanto mais colados estavam nossos corpos mais entrelaçávamos os braços e pernas, de maneira tal aparecer um só. À medida que ia lhe cariciando com as mãos, com a boca eu a beijava na face numa suavidade tão macia que mal sentia a pele fina e rosada dela. Naquele esfrega-esfregaa menina entrava em devaneios e a bolina chegava a um gozo ignorado muito intenso. Por minha vez eu também sentia um prazer tão gozoso e intenso a me provocar arrepios. Tudo aquilo deixávamos muito intrigados e confusos. Era algo incompreensível para as nossas mentes sem culpa, conhecer a transformação dos nossos corpos com a chegada dos primeiros hormônios – testosterona para ele e progesterona para ela – sinal da aptidão para procriar. A puberdade. Lá do alto, como quê abençoando o colóquio amoroso a lua parecia apagar a sua luz momentaneamente para esconder aquelas duas criaturas amantes na inocência contra olhares alheios. Daquela maneira permanecemos muitos minutos alheios a tudo o que nos rodeavam e o tempo parecia uma eternidade, até que... pelas vinte e duas horas quando o astro noturno na posição equatorial, alumiava-nos pela metade, passava por ali defronte aos dois, Dona Cacilda. Naquele instante, meditávamos ainda sobre o acontecido conosco que, extasiados, nada concluímos. Ignorávamos ser aquele transe a passagem da meninice inocente para a de jovem, perigosa. Daquela ocorrência dava-se o início de sermos homem e mulher. Ainda continuamos juntinhos na presença de alguém a nos espionar sem percebermos. Eu assustei-me com o vulto imóvel de Dona Cacilda e com sua voz suave e meiga a dizer-me: - “Zezinho, a mamãe não gosta de menino lutrido” e prosseguiu rumo à porta da cozinha. Este era o apelido familiar com que era tratado.No mesmo instante foi desfeito o colóquio amoroso, indo cada um para sua casa. Eu entrei fui direto para a cama e naquela noite não dormi, em face da reprimenda da mamãe e remoí a noite toda na imaginação: “não gosta de menino lutrido!, não gosta de menino... lutrito” e aquilo martelava nos meus ouvidos: “menino lutrido!!?, menino lutrido!!?” e ecoava em todo o meu SER: “LUTRI-DO!!!?” A frase inteira pronunciada: “Zezinho, a mamãe não gosta de menino lutrido” ribombava em meu corpo estremecido como trovão nos grotões ao pé da serra nas noites tempestuosas. Amanheci adoentado, efeito intenso da correção materna. Era a voz da consciência ouvida com tanta repulsa que ensurdeceu-me com mil repetições: menino lutrido; menino lutrico; menino, lutrido; lutrido...Não atinava como fui atingido com tanta intensidade por uma frase tão simples dita pela minha mãe em um momento tão bonito de amor. Procurei saber o que queria dizer a palavra lutrido e não encontrei o seu significado em nenhum dicionário. Entretanto, passei a entender quando concluí a faculdade que fora um menino libidinoso”. Mais tarde, com a compreensão da vida, já na terceira idade, descobri o porquê da minha timidez no trato, não só com as namoradas, mas também com a sociedade em geral”. Hoje Zé Bento, já carcomido, tem todas as imagens da sua existência projetadas na tela da vida a serem conhecidas das mães que ainda nos estão presentes.

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