Paulo Braga Neto- Barrica d´agua!


    Embora este acontecimento tenha ocorrido em meados da década de 30, chegou-me aos ouvidos vindo de uma fonte fidedigna, meu saudoso primo Apparício, que também ouviu do seu pai, meu tio Apparício.
    Como sempre fazíamos, ainda solteiros, nas noites de sábado em Pirangi, sem nenhum outro programa em nosso ocioso calendário, deixávamos ficar em longas e ecléticas conversas, bebericando pausadamente o Dreher - o conhaque do momento - em uma mesa no bar do Waldir Rovéri.
    Assim, num inesgotável e prolífico repertório de histórias, induzidos por doses do aromático etílico, discorríamos, caminhando por épocas lugares e pessoas que, se já não eram mais deste mundo, ainda viviam presentes em nossa imaginação.
    Daí, numa dessas sabáticas ocasiões, meu primo fazendo-se ouvir por uma distinta plateia de amigos que foram juntando-se ao nosso redor, discorreu, sem dialética, uma história que até então, ninguém havia contado.
    Passemos aos fatos.
    Lá pelos lados de Urupí, uma pequena e palúdica cidade as margens do Turvo que rolava plácido, numa casa avarandada, num sítio não muito longe de um tranquilo remanso do rio, moravam Genival e sua mulher, Vilma. Ambos de antigas famílias tradicionais de Pirangi que, há muito, já não são mais desse mundo.
    Eram criadores de gado de corte e cavalos de montaria e tração e viviam desse laborioso expediente numa época de pouco luxo e muita escassez.
    Ele, pacato e paciencioso, de poucas palavras e de muita ação. Ela, impulsiva, exagerada no mando e desmando e no muito falar.
    Estavam, ali, dois temperamentos antagônicos – o macho e a fêmea – à suportarem-se.
    Ela sempre se intrometia no entabular das negociações do marido.
    Genival passava por maus bocados diante de rudes compradores que ali apareciam para negociar. Mas suportava serenamente os palpites da mulher.
    Hábitos estranhos o dessa senhora. Não convidava ninguém para entrar e nem se servia café para visitas pois que visitas nunca foram bem-vindas.
    Naquela semana chovera à cântaros tornando lamacenta as imediações da casa. E que não se entrasse com os pés enlameados.
    No dia, em que iria fechar uma venda de um grande lote do gado, Genival já esfregava a mão de contente pelo lucro que iria auferir, quando logo de manhã a esposa, apontando o dedo no nariz do marido disse-lhe que não permitiria o negócio.
    Os ânimos se acirraram e, até o momento que o futuro comprador chegou o ambiente ainda estava “azedo”.
    Reunidos na frente da casa, Genival e o comprador acertavam a negociação e, sem mesmo apear,ali também estava meia dúzia de peões boiadeiros que conduziriam a manada.
    E, mesmo antes que fechassem o negócio, eis que a mulher descesse as escadas da varanda com o dedo em riste rugindo que ela não permitiria a venda.
    A peãozada, assombrada, disfarçou uma risada; o comprador, atônito, ficou pasmo ante tamanha ferocidade.
    E Genival? Pacato e paciencioso, de poucas palavras e de muita ação, achegou-se até a esposa; de imediato levantou-a sobre a cabeça e ato contínuo, jogou-a de ponta-cabeça no barril mais próximo, ainda cheio d’água das últimas chuvas.
    Aquela duela, não suportando o peso e, os aros e os barrotes se soltaram desmanchando-se, dispersaram pelo chão, agora mais encharcado pela água que se espalhava.
    Surpreendidos com a inusitada situação que ora se apresenta-va, todos ficaram boquiabertos, paralisados.
    E a megera surdiu esquálida e ensopada da lama. Espavorida pela singularidade do castigo, muda como uma sombra correu para dentro de casa e, por semanas, permaneceu de cama febricitante e sem se alimentar. Esquálida e apática, dia a dia, definhava com os cabelos desgrenhados e olhos sem viço.
    Certa manhã, Genival encontrou-a sem vida. Não aguentara o choque da refrega. Seu corpo baixou numa campa rasa no cemitério de Urupí mas seu espírito jamais sairia daquela casa avarandada. 
    Diziam que aquele rincão nunca mais fora o mesmo desde en-tão. O paradeiro de Genival, porém, ninguém sabia informar. Pela propriedade deteriorada e abandonada, medravam o mato e incultas ervas daninhas e acreditavam ser, agora, mais um lugar mal-assombrado.
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A noite deste sábado já principiava a dar lugar à madrugada de domingo.
Apparício, estrategicamente, calou-se e, por alguns minutos, pôs-se a observar em cada um de nós a dramática sensação despertada. Depois, guardando o maço de cigarros no bolso do paletó, levantou-se, deixando-nos perdidos no vácuo das nossas fantasias
Despedimo-nos, tomando cada um, o nosso rumo. Com a mente ligeiramente embotada pelo etílico e ponderando sobre a sina de cada um, desci a Campos Salles e entrei à esquerda na 15 de Novembro, já deserta a estas horas. Com efeito, arrepiava-me ouvindo apenas o som dos meus passos e imaginava escondido em cada penumbra da rua, o ardiloso e misterioso gênio do destino que determina as vicissitudes na nossa vida de pobres mortais.




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