Rafael Ornelas Dias- Aprendendo a viver



Do lado de cá do vidro, com uma rodelinha aberta para a entrega do dinheiro e a visão do mundo eu os assistia em segredo. Estavam em espécie deliciosa de reverberação, a fala de um encontrava trampolim no coração do outro. O horário ainda era cedo para a próxima viagem e a rodoviária estava vazia. Eu comia meu pão de queijo com coca-cola. Era frio como toda madrugada precedida pela manhã. Acordar às cinco é aprender a viver. Aprende-se a viver na disposição mansa de aceitaras coisas contrárias. Já lhe disse que conversei com um senhor de oitenta e oito anos que aprendera a viver há quarenta? Aprendera a viver há exatamente metade de sua vida inteira. Tivera a sorte de ser um bom aluno órfão. Eu sou um jovem trabalhador que acorda cedo e aprende cedo os contornos da vida. Conviver com motoristas se aprende de tudo, quase tudo. Depois de fazer o desjejum, desobstrui-se o canal de sorrir e respirar. Minha avó se formava outra depois do café, eu gosto mesmo é do pão de queijo. Não sei ser outra pessoa. Não gosto que me comparem com ninguém.
Não sei, na teoria tudo é fácil e só vejo senhores de idade falando como a vida é simples e boa. É parte intrínseca do jovem estar desacomodado como num colchão duro. Muito não se entende e se confunde, eu mesmo sofria por coisa parca e desnecessária e mais à frente vi como tudo é feito como Deus quer. Teorizar é perder a vida. Menino da minha rua é da igreja e da faculdade, perde duas vezes sua vida. Estando numa só delas ainda tinha a sorte de manter-se no maravilhamento. Eu não sei... é parte disso aqui a resposta? É gostoso só estar sentado aqui, olhando o homem e o seu amigo. Continuam conversando, o que tanto há pra conversar? Fazer pré julgamento é desconsiderar o mistério do outro. Eu já olhei tanto um rapaz bonito e o admirei por uma inteligência sem antes o ouvir falar (coisas de ônibus) e tendo um dia oportunidade de ir falar com ele, nada foi como imaginara. A vida não tem dependência conosco. Quantos foram meus enganos.O menino da minha rua é mais privilegiado que eu. Eu não sei...
É que de repente acaba se encontrando palavra pra dizer. Conhecer o que se diz acaba não sendo da primeira importância. Com os segundos passando fui percebendo que não planejavam comprar passagem alguma no meu guichê. Os homens foram inconscientemente pousando à minha frente,como dois passarinhos num fio de tensão.
Assim como se toma por providência divina a borboleta que nos atravessa ou a folha da árvore que cai em nossa cabeça, não bati a mão contra a outra como quem espanta pombos. Estava complica-do entender o que diziam, mas como estavam felizes na companhia um do outro! Velhos amigos de recente encontro? Comecei a criar sobre o teatro mudo: mistério as causas e condições deste encontro. Não planejavam conhecer novas pessoas, novos amigos, amores. A relação deles era sem nome, consideravam-se caquinhos valiosos na vida do outro, guardavam-se em segredo. Eram de uma amizade sem glórias. Isto eu entendo: acontece com quem está aprendendo a viver.
A rodoviária em que trabalho é diferente da de Belo Horizonte, com seus inúmeros guichês de companhias de ônibus, caixas e caixas para atender às filas cada vez maiores. A rodoviária de
Guanhães só possuía duas companhias de viagem: Saritur e Pássaro Verde. Foi com orgulho que contei aos meus avós que iria trabalhar para a Saritur, para uma empresa de mais nome e com melhores carros. Vovó só queria que eu trabalhasse, que trouxesse dinheiro para casa, que vivesse a realidade de qualquer brasileiro. Vovô ficou bem feliz com a notícia, me deu um beijo e falou com orgulho que em sua vida inteira teve cinco empregos. Eles é quem sabem. Não tenho pretensões de sair de Guanhães, não trabalho para juntar dinheiro e comprar minha casa própria, não me faz bem a ideia de me desenraizar. O dinheiro é para fortalecer as duas aposentadorias de meus avós. Como gosto deles! O que ainda não sabem sobre a vida? Angustiam-se sobre o que não aprenderam, sobre o pouco tempo que resta. “Pobre do velho que vê o corpo envelhecer sem poder fazer nada” resmungava minha avó ao chorar pela pele flácida do antebraço.
Pobre o jovem que não vê a beleza de ser jovem. Tomei consciência: todo jovem é bonito.
Todo jovem tem a potencialidade da felicidade. Todo jovem é sonhador.
Todo jovem é artista por natureza.
Todo jovem é risonho por entendimento próprio das coisas.
Todo jovem é inocente.
Todo jovem chora ao perceber que está perdendo tempo. Todo jovem chora ao perceber que está perdendo sua jovialidade.
Todo jovem é um grupo e um indivíduo.
Todo jovem se trai pra se encontrar. Todo jovem testa suas próprias teorias. Todo jovem se re-adequa a uma nova teoria, apaixonado.
Assim também são todos os velhos. Em que momento de nossas vidas começamos a seguir filosofias para encontrar a felicida-de?
Distraído, nem percebi quando os dois homens se aproxima-ram do meu caixa.
- Bom dia - e olhando para o meu crachá - Sandro. Tudo bem? Vou querer uma passagem para Belo Horizonte, do próximo ônibus, por favor.
Não querendo perder a chance de conhecê-los, perguntei se o outro não o acompanharia na viagem.
- Carlos quer continuar vivendo aqui, cuidando dos pais. Eu moro em BH e preciso trabalhar... A gente aprende a ir soltando a mão. É sempre melhor soltar a mão. Tudo quando pode ser, não é?

Fiz que tinha entendido com a cabeça e entreguei a passagemgem ao homem. Os dois foram esperar o ônibus na outra extremidade da rodoviária. Não sei se havia entendido verdadeiramente. Leva tempo pra entender. “Tudo quando podia ser”. Meu celular começou a vibrar, era minha avó.





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