Thereza Freirez- Um encontro com o destino


    Para certas pessoas as ciganas são vistas como terríveis criaturas. Elas penetram a alma dos outros desfibram os sentimentos de cada um, como os anatomistas escapelam um cadáver. 
    Não é bem assim, as ciganas possuem um grande poder de percepção para prever o futuro. Isto também acontece com outras mulheres em outras culturas. São pessoas especiais, que desencadeiam um poder, que pode ser chamado de: “Poder  Divino”.
    O conhecimento de algo que está por vir não é fundamentado na razão. 
    Neste caso consideramos como sendo frutos de lampejos espirituais. Eles fazem parte de um universo metafísico. Por essas razões, as informações que sucedem uma adivinhação pertencem a uma esfera engajada num emblema sagrado. 
    Athenas era uma cigana com seus quarenta e poucos anos. O tempo a enriquecera espiritualmente e dera-lhe uma visão de vida raramente igualada. Foi neste horizonte particular de elevada penetração que Lívia a encontrou. A sala era bem iluminada por grandes janelas, por elas via-se um jardim, e eram épocas de floração, paredes bem decoradas, percebia-se um ar de riqueza, sem afetação, o que não destruía o prestígio da proprietária. 
    Lívia trazia no olhar um brilho de esperança, podia ser a luz da fé, ou algo muito particular tanto quanto o desejo que acalentava.
    - Quer ver o que dizem as cartas? Perguntou a cigana.
    - Sim , respondeu apressadamente Lívia já receosa da predição.
    A cigana dispôs na mesa as cartas, depois de havê-las baralhado duas ou três vezes. Então disse: 
    - Lamento ter de dizer-lhe que vejo atravéz das cartas uma nuvem escura em sua vida , a má sorte paira sobre sua cabeça. É dever de toda adivinha dizer sempre a verdade, disse Athenas. Porém, no seu caso é especial, falo para que haja de sua parte uma preparação física e espiritual.
    Lívia que não desgrudava os olhos da cara da cigana, assustou; contudo não fez nenhum movimento extraordinário: como bailarina lembrou-se de não se trair pelos gestos. 
    Lívia sabia da importância da carreira que abraçara e de seu 
desenvolvimento, cada vez maior; logo faria parte de uma grande companhia de ballet. 
    Seria aplaudida por centenas de ou milhares pessoas. Pensava que consultar as cartas fora um ato incongruente. Ao mesmo tempo não entendia o motivo de ali estar; procurou afastar da sua mente esses pensamentos, pois questionamentos agora de nada adiantaria, então:
    - O que o futuro me reserva? Perguntou pausadamente, procurando não demonstrar curiosidade.
    A cigana parecia não encontrar as palavras idôneas que a salvassem. Que intercedessem por ela... De súbito, tomou ares de sacerdotisa e, com duas cartas, uma em cada mão, fitavam-nas como se com este gesto pudesse mudar o que vira.
    Lívia inclinando-se à mesa e disse:
    - Por favor, diga , o que é?
  - Vejo alguns anos de glória, em seguida o mesmo número de anos, só que de dor. E Athenas acrescentou: eu não tenho nenhuma inferência no seu destino, você já nasceu com tudo traçado. O meu poder vibratório entra em harmonia com a sua luz 
interior, essa união no nível espiritual ascende à consciência infinita dos acontecimentos do passado e do futuro. Toda essa energia se dá através das cartas, daí o fundamento de abri-las.
      Athenas era uma cigana fascinante, tinha um olhar penetrante, a voz era suave, porém firme. Apesar de ter um corpo bem feito e cabelos sedosos, era uma criatura sem afetação. Olhava dentro, não escapava nem a qualidade nem o valor de cada coisa.
    - Glórias! Dores! Exclamou Lívia baixinho.
    A moça estava surpresa. Procurou escapar ao olhar da cigana, com lágrimas nos olhos baixou a cabeça.
    “Nem tudo se cumpre na profecia”. Poderia também ser um momento de pusilanimidade da adivinha, pensava. “Consultaria outra cigana”. 
    Para Lívia a dança não era apenas um espetáculo, dançar era tão importante quanto respirar. “Com a dança romperia todas as barreiras rígidas e hostis que surgissem no caminho”, pensava a moça, deixando sua imaginação deliciar-se nessa doce afirmativa. 
    Por isso, ao chegar à rua caiu na realidade em que vivia e esqueceu a cigana. 
    Afinal de contas, os movimentos transcendem o poder da palavra. Eles podem ser uma forma de aceitação, questionamento ou mesmo contestação, e entre muitos insetos, pássaros e mesmo outros animais, a dança faz parte do ato do amor. 
    Lívia tinha a mente vagando no que era a sua vida., de súbito, veio à mente a cigana. _ Errou! Exclamou a moça, assustada. 
    - Não ria de mim, não ria...
    Lívia, com medo, fez um gesto afirmativo.
    - Tu não crês realmente nessas coisas? 
    Estas palavras eram-lhe murmuradas ao ouvido como a própria voz da cigana. Lívia pensou por alguns segundos, depois:
    - Neste caso, por que me fiz ir até ela?
    Porque desejava conhecê-la, respondeu a moça para si. Lívia ocultou o rosto nas mãos. Ela amava a dança em todas as suas nuanças. 
    Queria dançar a vida, não importava se por vinte anos ou tão somente por dez?! 
    A vida só se justificaria no palco. Ampliando a linguagem da dança, a ênfase do movimento. Captar o espírito do tempo, sem projeção no futuro ou passado, viver tão somente o presente. 
    Lívia flutuava em cena, e orientava para esse fim, toda a sua linguagem corporal, o palco era um território sem fim para a sua ousadia e , sobretudo, porque ela expressava com intensidade e paixão a necessidade de seu povo, fosse ela de terror, agonia ou êxtase. 
    Lívia fechava os olhos, procurava outras coisas; mas a voz da cigana sussurrava-lhe aos ouvidos o que as cartas diziam:
    “Glórias! Dores!” Ela sentiu, porém, que cometera um erro crasso indo até à casa da adivinha.
    Não pretendo mais falar-lhe, disse a moça para si, ela me desagrada demais. E suspirou profundamente. Positivamente, Lívia tinha medo, embora procurasse rejeitar a ideia. Era como se algo terrível estivesse suspenso sobre sua cabeça e ela tentasse desviar. De súbito a bailarina confessou de si para si que a linha do destino poderia não desmentir as cartas da cigana.
    “Meu Deus! Não posso estar assim... pensou, “quanto antes verei outra”. 
    Lívia era monstruosa e gloriosa numa libertação da vida pelo movimento. A liberdade de linguagem que nela havia, prevaleceu-se da dança para ser livre de palavras quanto ela quis. Todo o seu poder foi adquirido através da disciplina e da energia. 
    Representava as tragédias com o intuito de lembrar os acontecimentos da vida. 
Seu corpo todo lamuriava quando ela tomava movimento numa cena mais vasta. Ela se prolongava num sentido de experiência de vida: tanto na tragédia grega como na filosofia indiana
    A dança seria medíocre se o bailarino não tivesse nada para dizer. E para Lívia a dança tinha uma significação universal. Na dança existe o canto, a música e a poesia. Através dela se descobre a cultu-ra de um povo. Pois o corpo deixa de ser uma coisa para se tornar uma interrogação. A dança é um fluxo do movimento, do ritmo do todo. “Se fosse falsa...” Estas palavras desapareciam e reapareciam. Lívia se anunciava à vida. A esperança é um fio já brotado, já prometido e isso conforta. “Que poderia a profetisa dizer? ” Pensava ela sim . Quando o corpo se punha em movimento, sete mil palavras talvez não conseguissem dizer o que num só gesto ela podia exprimir.
    Todos os espetáculos se parecem uns aos outros, às vezes, nem sempre, embora, dizem que só os atores é que mudam. Neste caso, Lívia era uma inovação. Parecia que todo talento estava contido nela.     Todo e qualquer elogio caia no vazio. Ela tinha a exata noção de sua grandeza. 
    Lívia considerava que a intimidade e harmonia que existia entre a dança e ela era inabalável. No palco ela se sentia a própria essência da dança. Foi nesta visão de vida que a bailarina descobriu que amava um homem que não pertencia ao seu meio artístico.
    A catástrofe foi terrível. Não há como descrever o abalo produzido naquela alma angelical. Como o amor vence sempre, Lívia casou-se. Porém, não fora seu marido o prenuncio da dor eterna (previsto pela cigana). O marido até que amava a arte da mulher: fora sim, seu único filho.
    Lívia abandonou a dança, e sua vida junto ao filho, se tornara um túmulo.
Como há um abismo entre aquele tempo e o tempo de hoje! Fiz alguma coisa de útil durante os meus anos de glória? E agora sou uma coisa útil neste tempo de dor? Questionava Lívia, sentando-se ao lado do filho, que tanto amava. A bailarina abandonara o mundo dela para viver no mundo do filho. Ele era autista.  E assim se cumprira a profecia de Athenas.



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