Idemar de Souza - Pequena parte retirada do capítulo "Camisa Preta" da obra "Sobre Trechos Duma Vida".




" Num Domingo de Ramos, pela manhã, Mário Tolina não cuidou de apanhar algumas pequenas frondes de palmeira, como de costume, para colocá-las num lugar de destaque, na sala em sua casa. Aquele fazer era parte da tradição da família que, católica, não poderia se esquecer daquela devoção praticada naquele domingo especial, de tão relevante que era.
Aquelas ramas que também se chamavam de palmas, eram levadas à igreja católica, naquele domingo, para que o padre as ben-zesse.
Era uma atividade praticada com muita fé, donde adviria uma força espiritual cheia de simbolismos que na família italiana, pela crença que tinha nos dogmas da religião reforçados, perene-mente, nas pregações dos párocos, tornava-se muito valiosa.
Naquele dia Mário, desatento ao compromisso religioso, com o juízo afrouxado pelas perturbações maritais, encontrava-se sentado à soleira larga da janela do seu quarta, a uma altura apro-ximada de três metros em relação à passagem dos colonos, abaixo, bem rente à
parede do quarto, como se fosse esse corredor uma ruazinha bati-da. Com o costado apoiado num dos batentes, mantinha a per-na direita do lado de dentro, com o pé plantado firmemente, no piso de cimento rústico, a dar-lhe o necessário equilíbrio. A outra estava estendida sobre a soleira da janela até a sua junção com o batente oposto, de sorte que, como seu costado pressionado pela perna esquerda ao batente lhe punha numa posição segura, bastante confortável, enquanto afiava, com todo esmero o seu podão que utilizava, de ordinário, em algumas das atividades no roçado.
Agora, afiar o podão tinha outra finalidade. Naquele domin-go, depois do entardecer, quando as pessoas já se houvessem reco-lhido para o repouso, mataria o seu desafeto Gavião, metido a de-sencaminhar as mulheres do pedaço, em especial se comprometidas ou casadas fossem: se casadas, maior seria o regozijo do degenerado.
A mulher de Mário, como sempre atenta a tudo que se pas-sava, viu que nisso havia algo estranho a lhe botar vigilante. Precisa-ria saber a causa daquela atividade desusada do marido, àquela hora, ainda que fosse para levar, dele, uma chapada. Esperaria o instante propício para perquirir sobre as intenções do ciumento.
O podão ficara pronto, bem afiado, como pretendia. Agora seria encontrar o safado e pronto. Executaria a promessa que havia feito a si mesmo, isso se Gavião, mais alto, de maior massa corpórea não o executasse com o seu próprio instrumento de morte. Mas estas conjecturas não faziam parte o plano macabro do homem perturbado. Os ciúmes que tinha da mulher e que lhe causavam uma dor profunda, que nunca parava de doer, transformaram-se num ódio doentio, que passou a se revestir de uma necessidade imperiosa de vingança pela morte do galante Gavião.
Rosa, a mulher de Mário, era muito diferente das demais daquela comunidade rústica. Os seus hábitos incomuns e seu falso recato repeliam-na do contato com as demais mulheres da localida-de. Tirando isso, todos falavam de sua beleza física, do seu jeito malicioso de tocar a sensibilidade dos homens, todos eles afetados pelos seus olhos faiscantes, pelos seus cabelos longos e negros, pelos seus lábios de bordas salientes, a conferirem-lhe ares de mu-lher livre e fatal. De pele morena e relativamente fresca que os sóis pouco douravam, esta mulher era absolutamente insensível às críticas que pudessem existir sobre ela. Fato é que certos homens hipócritas, embuçados a cubarem-na, estavam sempre prontos à espera do que lhes pudesse sobrar daquele corpo venenífero.
Os seus seios volumosos, mal coberto, balouçantes e nervo-sos atraiam,de ordinário, cobiças retraídas. E, como não falar da sua cintura apertada e, sobretudo, da parte tocante às nádegas, de con-tornos muito bem delineados, tudo isso contido em apenas cinquenta e poucos quilos de uma mulher sensual.
Aquele corpo cheio de benesses que ela vivia a expor, era atrativo excitante que, com alguma naturalidade, o exibia colônia em fora. As bandas daquelas nádegas salientes subiam e desciam de forma estonteante, conforme tocassem, abruptos, no solo os seus pés ligeiros.
Os seios balouçantes - não havia sutiens, à época, que arre-fecessem àquela atração voluptuosa - saltavam, ao compasso do caminhar, envoltos por vestidos de talhes ousados, leves e singelos, a causar calafrios aos homens solteiros ou casados, sem contar o seu assanhamento se manifestando às tontas. Não se cobria como as demais mulheres da comunidade, mas não parecia conduzir-se, as-sim, para despertar a ira delas. Era o seu modo inconsequente de ser. Quando falava, seu risinho leve, eivado de malícia, era meio tímido. Era como se se arrependesse, aos olhares dos homens insensatos, de ter-lhes gracejado.
Seus grandes olhos claros e meigos, quase inocentes, a denotarem pudicícia, fitavam os homens do meio para baixo, como a ocultar pensamentos insondáveis. Não enfrentava a ninguém de olhos nos olhos. Havia, sem dúvida, naquele modo de ser, algo intrigante. Era como se mantivesse de modo subjacente, a todo tempo, um convite à intimidade com o sexo oposto. Devia haver um vazio masculino imensurável, em sua alma. É possível que a sua solidão de homens, naquele estágio da vida lhe doesse muito.

Por onde passasse a mulher, rebolando o corpo e insinuando coisas, deixava os homens ouriçados. Rabos de olhos, disfarçadamente, seguiam-na, até longe, cobiçosos. Tinha no corpo o fervor de quem tem muito a dar e a receber, muito além daquilo que lhe proporcionava o marido tobó, frígido, desalentado das práticas maritais. Certamente nunca lançara, sobre ela, o insólito marido, um olhar eivado de malícia, de desejo, de cobiça, tampouco que lhe proporcionasse suspiros, em atos de amor profundo. A perenidade invernal de sua cama deveria ser-lhe entediante."



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