O elefante que caiu do caminhão- Cecília Figueiredo



Escutamos um estrondo de pedra vindo ao chão. Todos olhamos à nossa volta. Era como se estivéssemos mergulhados em um aquário fresco e agora aquele baque seco emergira-nos para a terra viva. Segundos depois, os gritos. Como se não pensássemos, viemos correndo para a direção de onde algumas pessoas já colocavam as mãos às cabeças, algumas voltando o rosto em claro sinal de horror. Em alguns poucos segundos já avistávamos o pequeno ajuntamento de gente e por trás dessa colina de braços, casacos e pés vimos finalmente uma montanha cinzenta e arredondada lançada ao chão. O que vimos, em aflição, arfava; era uma massa de couro amassado que caíra sobre o chão poeirento da rua e que desse monturo escorria um riachinho de sangue vermelhíssimo de bela viscosidade, vivo, numa variedade de cores primárias abaixo da sua única cor de cinza, mas que permanecia arfante. Pura dor. Era um elefante de toneladas máximas. Ninguém saberia calcular se perguntado qual seria o seu peso bruto rachado e quantos litros de sangue esvaíam-se de sua estrutura agigantada pateticamente estirado, prostrado por sobre um chão de muitos paralelepípedos irregulares e que notamos bem, estavam soltos. Talvez fosse isso que tivesse lhe cortado o couro mais a fundo como um gume onde a faca é a pedra mal cortada que tropeça a sandália, que rala o dedo, sempre julgamos assim? que machuca, mas não mata. 64 Em poucos segundos saberíamos consternados que o elefante caíra de um caminhão de circo à hora de virar a esquina apertada por muitos carros estacionados. Não haveria explicação mais contundente: o caminhão também jazia tombado inerte em sua carroceria de pantomima rasgada em duas partes. Havia também um motorista ao lado que em desespero, por detrás da sua barbicha rala, falava consigo mesmo em explicações vá- rias. Conforme a rua enchia-se de gente, os gritos foram dando vazão à uma corrente febril de pedido de ajuda, de modo que vimos ainda assustados um veículo igualmente monstruoso que identificamos de imediato - um carro do corpo de bombeiros estacionando rapidamente próximo ao elefante combalido, retirando com pouca gentileza as pessoas que apinhavam o espaço. O elefante continuava naquela respiração de terminalidade como poderia parecer impossível a um coração daquele porte e tórax vigoroso a liberar apenas um pouco do ar exagerado e gratuito que todos nós, atônitos, respirávamos. Ouvimos as primeiras tentativas de providências; será que ouvimos cabos de aço? Profissionais especializados em grandes acidentes também iam sendo chamados e os que estavam perto, como paus de palco, iam aos poucos compreendendo o desastre da dor de um animal que não chorava, não lastimava a má sorte, não emitia uivos do sofrimento lancinante, apenas empreendia o exercício contínuo de respirar curto, a tromba como um novelo gigante de lã murcho jogado de lado, as duas curtas pernas superiores por sobre as duas curtas pernas de trás frouxamente alinhadas. Imaginei o monte acinzentado – seria uma fêmea combalida, uma mulher nascida em vida de elefante, de suavidade apreendida e renascida 65 ao longo das muitas gerações de elefantes de uma terra estrangeira nem sempre farta, nem sempre pródiga, de sofrimento compulsório, acostumada a reverberar as dores de dentro com as dores de fora em absoluta serenidade? Teria sido mãe? Teria cuidadosamente guiado sua prole pelas searas, pelas fontes de água limpa e água suja, teria se desesperado quando um filhote lhe fora tirado pelas mãos ambiciosas dos caçadores, ou ela própria tirada de seu meio, um adeus silente através dos olhos amendoados e aflitos enquanto era aprisionada, levada, treinada para o lazer de outros no trabalho forçado? Ou apenas um macho que esperava, cansado? O riozinho de sangue rubro agora dera em uma poça grossa de viscose e areia. Poucas hastes de sol davam ao espreguiçamento do animal o único ponto luminoso da sua compleição farta: o par de olhos doces, resignados, que ora abriam-se largos para nada olhar e que cerravam-se, morosamente. O que durou, durou. Hora e meia entre um içar e desabar, um carro e um trator, um bando de ativistas e um bando de socorristas, cada qual em seu turno. Todos estivemos ali, a arfar também com a dificuldade de capturar com fragilidade o ar escuro da noite. Finalmente, após nosso cansaço, sem mais isso ou aquilo, o elefante foi levantado por uma espécie de escavadeira, primeiramente empurrado para a base com bravura, mas não sem violenta manobra, e lá estavam orelhas ao vento preto, patas azuladas pelas luzes dos postes altos, tromba a amolecer, gelatinosa e bamba zingando suavemente como se morresse. No exato momento em que subiu, o corpanzil de borralho passou por sobre as nossas cabeças, tão devagar, 66 como se pudesse eternizar o bizarro transporte de um elefante na rua da cidade, borrado em sangue, sem choro, mas que arfava. Foi de um átimo; enquanto estava sendo içado, olhou-me diretamente para dentro dos meus olhos. Senti que fora como um ser humano me olhasse – pouco entendo de decifrar olhares. Mas olhou-me, no curto espaço de tempo que tivemos. Nos meus, um olhar de piedade, nos olhos dele, submissão da vontade. Falamos dias e dias sobre o caso. Meu filho mais velho recontava a história como se para si mesmo, ouvíamos no entanto como se fora a primeira vez tais as minúcias que ele adicionava quando descrevia a população abismada, a dureza do chão, a iminente morte do elefante... Antes que nos esquecêssemos por completo alguém veio nos dar a notícia de que o elefante quase recuperado havia sido transportado para o zoológico municipal, retirado do proprietário à força de medidas legais por decorrência de maus tratos. A notícia ainda vinha com detalhes do transporte que demandou manobras fenomenais e por fim, lá estava ele quase são e exposto ao público. Foi quase uma unanimidade, decidimos o dia que todos estivéssemos de folga e assim no domingo seguinte partimos todos para verificarmos em pessoa o elefante em plenas posses físicas depois daquele acidente bárbaro. Era uma manhã de sol como as outras, quente como as outras. Muito pouco afeita a zoológicos, encontrei em um súbito constrangimento ao entrar naquele parque público que expunha aves nos cercados e represas artificiais escuras para jacarés e patos. Tivemos que subir uma pequena ladeira já ladeados por ambulantes de doces, algodões cor de rosa, de um rapaz de bigodinho que demonstrava no chão um brinquedinho de lata; lá em 67 cima já pudemos ver a pequena reserva para os elefantes, dois ou três no máximo ao primeiro relance. O espaço era pequeno se considerarmos que um elefante durante sua vida na savana possui um campo inteiro a explorar, acostumado a fazer a longa caminhada em busca de alimentos para sua manada, com breves pausas para acariciar ternamente os filhotes que poderiam ter se atrasado ou mesmo, por pura rebeldia ao serem quem são, ao distrair a mãe para lançaram-se ao mundo. O mundo ali era um quadrado cercado com uma água rasa repleta de cascas de frutas – melancias, laranjas e até um balde plástico de cor berrante – da água subia um cheiro de apodrecido. Os bichos balançavam as trombas sistematicamente, molemente, naquele compasso de dança lenta que jamais evolve - assim começa e assim finda. Finalmente, pudemos vê-lo. Estava debaixo de uma marquise de folhas de flandres, à sombra. Estava sentado; tinha metade do corpo virado para o público de modo que a única coisa que primeiramente pudemos ver foi seu lombo vasto como um monte. Tivemos que dar uma volta inteira pelo acesso acima dos alambrados para enfim vislumbramos sua cara cinza, a longa tromba tombada à frente num repouso sereno. A cena de ócio também nos descansou. Todos aqueles dias estivéramos lançados sobre a sorte do elefante e sem que notássemos já o havíamos incluído em nossas preocupações como se um ente querido estivesse em doença grave. Agora, o alívio. Longe das garras de um tratador de circo, não exatamente fincado no seu habitat natural, pelo menos agora tínhamos a sensação de que ele poderia sonhar com sossego com a sua savana, com suas atividades naturais de bicho, com a família do mes- 68 mo pragmatismo. Uma brisa suave bateu em nossos ombros, era uma primavera quente, mas brotinhos de flor enchiam as árvores. Durante todo o tempo que ficamos ali, ele não se levantou nem nos olhou diretamente. Não precisava; tinha os olhos fixos na mureta à frente, mas não pareciam contar de alguma dor. Depois de algum tempo observando o elefante, saí- mos. No caminho de volta para casa, alguém quis sorvete, à noite cada qual foi fazer o que quis. Nunca mais voltamos a falar do elefante que caiu do caminhão.




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