Escutamos um estrondo de pedra vindo ao chão.
Todos olhamos à nossa volta. Era como se estivéssemos
mergulhados em um aquário fresco e agora aquele
baque seco emergira-nos para a terra viva. Segundos
depois, os gritos. Como se não pensássemos, viemos
correndo para a direção de onde algumas pessoas já
colocavam as mãos às cabeças, algumas voltando o rosto
em claro sinal de horror. Em alguns poucos segundos
já avistávamos o pequeno ajuntamento de gente
e por trás dessa colina de braços, casacos e pés vimos
finalmente uma montanha cinzenta e arredondada
lançada ao chão. O que vimos, em aflição, arfava; era
uma massa de couro amassado que caíra sobre o chão
poeirento da rua e que desse monturo escorria um riachinho
de sangue vermelhíssimo de bela viscosidade,
vivo, numa variedade de cores primárias abaixo da sua
única cor de cinza, mas que permanecia arfante. Pura
dor. Era um elefante de toneladas máximas. Ninguém
saberia calcular se perguntado qual seria o seu peso
bruto rachado e quantos litros de sangue esvaíam-se
de sua estrutura agigantada pateticamente estirado,
prostrado por sobre um chão de muitos paralelepípedos
irregulares e que notamos bem, estavam soltos.
Talvez fosse isso que tivesse lhe cortado o couro mais a
fundo como um gume onde a faca é a pedra mal cortada
que tropeça a sandália, que rala o dedo, sempre
julgamos assim? que machuca, mas não mata.
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Em poucos segundos saberíamos consternados que
o elefante caíra de um caminhão de circo à hora de virar
a esquina apertada por muitos carros estacionados.
Não haveria explicação mais contundente: o caminhão
também jazia tombado inerte em sua carroceria de pantomima
rasgada em duas partes. Havia também um
motorista ao lado que em desespero, por detrás da sua
barbicha rala, falava consigo mesmo em explicações vá-
rias. Conforme a rua enchia-se de gente, os gritos foram
dando vazão à uma corrente febril de pedido de ajuda,
de modo que vimos ainda assustados um veículo igualmente
monstruoso que identificamos de imediato - um
carro do corpo de bombeiros estacionando rapidamente
próximo ao elefante combalido, retirando com pouca
gentileza as pessoas que apinhavam o espaço. O elefante
continuava naquela respiração de terminalidade como
poderia parecer impossível a um coração daquele porte
e tórax vigoroso a liberar apenas um pouco do ar exagerado
e gratuito que todos nós, atônitos, respirávamos.
Ouvimos as primeiras tentativas de providências;
será que ouvimos cabos de aço? Profissionais especializados
em grandes acidentes também iam sendo chamados
e os que estavam perto, como paus de palco, iam aos
poucos compreendendo o desastre da dor de um animal
que não chorava, não lastimava a má sorte, não emitia
uivos do sofrimento lancinante, apenas empreendia o
exercício contínuo de respirar curto, a tromba como um
novelo gigante de lã murcho jogado de lado, as duas curtas
pernas superiores por sobre as duas curtas pernas de
trás frouxamente alinhadas. Imaginei o monte acinzentado
– seria uma fêmea combalida, uma mulher nascida
em vida de elefante, de suavidade apreendida e renascida
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ao longo das muitas gerações de elefantes de uma terra
estrangeira nem sempre farta, nem sempre pródiga, de
sofrimento compulsório, acostumada a reverberar as dores
de dentro com as dores de fora em absoluta serenidade?
Teria sido mãe? Teria cuidadosamente guiado sua
prole pelas searas, pelas fontes de água limpa e água suja,
teria se desesperado quando um filhote lhe fora tirado
pelas mãos ambiciosas dos caçadores, ou ela própria tirada
de seu meio, um adeus silente através dos olhos
amendoados e aflitos enquanto era aprisionada, levada,
treinada para o lazer de outros no trabalho forçado?
Ou apenas um macho que esperava, cansado? O
riozinho de sangue rubro agora dera em uma poça grossa
de viscose e areia. Poucas hastes de sol davam ao espreguiçamento
do animal o único ponto luminoso da
sua compleição farta: o par de olhos doces, resignados,
que ora abriam-se largos para nada olhar e que cerravam-se,
morosamente.
O que durou, durou. Hora e meia entre um içar e
desabar, um carro e um trator, um bando de ativistas e
um bando de socorristas, cada qual em seu turno. Todos
estivemos ali, a arfar também com a dificuldade de capturar
com fragilidade o ar escuro da noite.
Finalmente, após nosso cansaço, sem mais isso ou
aquilo, o elefante foi levantado por uma espécie de escavadeira,
primeiramente empurrado para a base com bravura,
mas não sem violenta manobra, e lá estavam orelhas
ao vento preto, patas azuladas pelas luzes dos postes
altos, tromba a amolecer, gelatinosa e bamba zingando
suavemente como se morresse.
No exato momento em que subiu, o corpanzil de
borralho passou por sobre as nossas cabeças, tão devagar,
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como se pudesse eternizar o bizarro transporte de um elefante
na rua da cidade, borrado em sangue, sem choro,
mas que arfava. Foi de um átimo; enquanto estava sendo
içado, olhou-me diretamente para dentro dos meus
olhos. Senti que fora como um ser humano me olhasse
– pouco entendo de decifrar olhares. Mas olhou-me, no
curto espaço de tempo que tivemos. Nos meus, um olhar
de piedade, nos olhos dele, submissão da vontade.
Falamos dias e dias sobre o caso. Meu filho mais velho
recontava a história como se para si mesmo, ouvíamos
no entanto como se fora a primeira vez tais as minúcias
que ele adicionava quando descrevia a população abismada,
a dureza do chão, a iminente morte do elefante...
Antes que nos esquecêssemos por completo alguém
veio nos dar a notícia de que o elefante quase recuperado
havia sido transportado para o zoológico municipal, retirado
do proprietário à força de medidas legais por decorrência
de maus tratos. A notícia ainda vinha com detalhes
do transporte que demandou manobras fenomenais
e por fim, lá estava ele quase são e exposto ao público. Foi
quase uma unanimidade, decidimos o dia que todos estivéssemos
de folga e assim no domingo seguinte partimos
todos para verificarmos em pessoa o elefante em plenas
posses físicas depois daquele acidente bárbaro.
Era uma manhã de sol como as outras, quente como
as outras. Muito pouco afeita a zoológicos, encontrei em
um súbito constrangimento ao entrar naquele parque
público que expunha aves nos cercados e represas artificiais
escuras para jacarés e patos. Tivemos que subir
uma pequena ladeira já ladeados por ambulantes de doces,
algodões cor de rosa, de um rapaz de bigodinho que
demonstrava no chão um brinquedinho de lata; lá em
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cima já pudemos ver a pequena reserva para os elefantes,
dois ou três no máximo ao primeiro relance. O espaço
era pequeno se considerarmos que um elefante durante
sua vida na savana possui um campo inteiro a explorar,
acostumado a fazer a longa caminhada em busca de alimentos
para sua manada, com breves pausas para acariciar
ternamente os filhotes que poderiam ter se atrasado
ou mesmo, por pura rebeldia ao serem quem são, ao
distrair a mãe para lançaram-se ao mundo. O mundo
ali era um quadrado cercado com uma água rasa repleta
de cascas de frutas – melancias, laranjas e até um balde
plástico de cor berrante – da água subia um cheiro de
apodrecido. Os bichos balançavam as trombas sistematicamente,
molemente, naquele compasso de dança lenta
que jamais evolve - assim começa e assim finda.
Finalmente, pudemos vê-lo. Estava debaixo de uma
marquise de folhas de flandres, à sombra. Estava sentado;
tinha metade do corpo virado para o público de
modo que a única coisa que primeiramente pudemos
ver foi seu lombo vasto como um monte. Tivemos que
dar uma volta inteira pelo acesso acima dos alambrados
para enfim vislumbramos sua cara cinza, a longa tromba
tombada à frente num repouso sereno.
A cena de ócio também nos descansou. Todos aqueles
dias estivéramos lançados sobre a sorte do elefante
e sem que notássemos já o havíamos incluído em nossas
preocupações como se um ente querido estivesse em
doença grave. Agora, o alívio. Longe das garras de um
tratador de circo, não exatamente fincado no seu habitat
natural, pelo menos agora tínhamos a sensação de que
ele poderia sonhar com sossego com a sua savana, com
suas atividades naturais de bicho, com a família do mes-
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mo pragmatismo. Uma brisa suave bateu em nossos ombros,
era uma primavera quente, mas brotinhos de flor
enchiam as árvores. Durante todo o tempo que ficamos
ali, ele não se levantou nem nos olhou diretamente. Não
precisava; tinha os olhos fixos na mureta à frente, mas
não pareciam contar de alguma dor.
Depois de algum tempo observando o elefante, saí-
mos. No caminho de volta para casa, alguém quis sorvete,
à noite cada qual foi fazer o que quis.
Nunca mais voltamos a falar do elefante que caiu
do caminhão.
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