Do seu mal afinado violão as cordas zuniam a produzirem
sons desarmonizados com a sua voz, a parecer
que levavam juntos, em conluio, os gemidos da alma do
cantor, aos confins do mundo.
Às vezes, dos seus cansados olhos, pingos de lágrimas,
suas únicas, solitárias e fieis companheiras, porque
brotadas de si mesmo, escorriam languidamente pelas
faces, por onde se extravasavam sentimentos de profunda
dor, a compor um quadro de tristeza imensa. Mais
pingos, e outros, e outros mais percorriam o mesmo rastro
deixado pela imensa mágoa, até que o notável pedreiro
os enxugasse, à manga da camisa, ao findar duma
canção miserável.
Ao final da cantoria, punha-se a requerer mais do
que muitas desculpas, uma infinidade delas pela sofreguidão
imposta aos assistentes, sem motivos confessados.
A plateia era limitada a Otelo e mais alguns dos seus
filhos, todos afetados de compaixão. O pequeno Miguel
percebia, posto que sem conhecer da causa do desvario,
que o ritmo, a melodia e a harmonia naqueles musicais
das noitinhas mornas, à porta da sala, eram um emaranhado
amorfo, inatual.
Neste homem se externava um langor não casual,
uma paixão doentia e profunda por uma determinada
mulher que talvez esgotada com os seus desajustes de
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toda ordem desaveio e distratou todos os pactos então
com ele havidos, sobretudo os amorosos.
Miguel, muitos anos após, viu outros dois, já quarentões,
ao cavaco um e ao violão o outro, em dupla,
de olhos alienadamente fechados, mas de forma tão leve
que um respirar que mais profundo fosse dum qualquer
simpatizante ali presente, ensejaria que eles se abrissem,
preguiçosamente. Eram formidáveis os irmãos. Já se foram
ambos deste mundo, mas Miguel ainda os ouve tocando,
quase a miúde. Tocaram com alguns dos maiores
cantores e cantoras do Brasil e do exterior.
Herdaram do pai, filho de espanhóis, esta imensurável sensibilidade à música. E, de sua vez, para mostrar que
também era hábil nesta arte, o velho ali, ao derredor, entusiasmado,
punha atravessado o violão às costas e tocava,
ludicamente, a levar os assistentes, admirados com a façanha,
a gargalharem repetidamente. E, também, de ordiná-
rio, era dado à prática de generosidades tangentes aos seus
funcionários, já que industrial próspero e de outras incontáveis
virtudes que faziam dele um homem admirável.
Agora Miguel já havia desenvolvido uma razoável
percepção neste campo. Então, podia degustar com toda
propriedade estas sonoridades adocicadas.
Já estes moços, maduros, não choravam nem gemiam
de dor como o pedreiro apaixonado. Apenas fechavam
com leveza os olhos e as cabeças liberadas das
coisas terrenas pareciam viajar extasiadas por todo o
universo, durante aquele brevezinho sono dum viés impregnado
de sensualidade. Os seus dedos automatizados
a dedilharem as cordas, estavam naquele certame em
contato com os instrumentos musicais, mas as cabeças...
Estas estavam a vagar ao longe, muito ao longe daquele
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melodioso sítio, rico em sonoridade. Estes não cantavam
a se estardalharem. Mantinham-se silenciosos como
que dormindo num jeito singular de tocar, de sentir e de
sorver aquela musicalidade.
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