O Manga- Fernando de Oliveira Cláudio



O sol nasce para todos! Claro que sim! Seria um absurdo se o astro maior pudesse escolher poucos privilegiados. Mas não, isso não acontece. Depois de um certo tempo a gente descobre que não são miragens noites com sol... Elas, realmente, existem, e começam lá pelas cinco da manhã. Mas, para alguns, não existe sol, não existe dia, só noite, e noite fria e vazia. Com um sorriso maroto tentará esconder a tristeza profunda, mas não consegue. É difícil enganar alguém com ar de falsa felicidade. A derrota pessoal é latente. A barba cheia e os fios de cabelos brancos que, sabem-se lá quando viu água pela última vez, é o retrato iminente de um indivíduo degradante. Lágrimas congeladas pelo sofrimento diário se misturam a um sorriso negro, vazio, cravejado de cáries e dentes podres, alguns em falta, outros clamando pela misericórdia de qualquer bondoso dentista. É a tradução do asco em pessoa. O cheiro horrível da falta de higiene pessoal é facilmente confundido com o odor desagradável que exala da sua velha roupa suja e desbotada (queria ele que fosse colorida), malhada pelo tempo e pela vida... mas, o desbotado são coisas do passado, de um passado bem distante. A pele queimada, surrada, cansada do sol na face, os olhos caídos... aparência moribunda. Um ser fechado, dono de charme chulo, cretino. Tenta o sorriso mas não engana. As peripécias que realiza não conseguem cativar nem o mais bobo dos transeuntes desalentados E quando consegue alguns poucos trocados, o bar mais próximo agradece a preferência. O cotovelo cheio de calos não é do trabalho, é do balcão. Lugar preferido, o seu espaço reservado. Assistindo TV, entre um gole e outro, espera em vão o tempo passar. O andar desajeitado pelas ruas, cheio de suingue, agride quem passa por ele. Não está só, uma matilha de famintos partilha em comum o mesmo referencial, lar, doce bar, o castelo mágico da selva de pedra. Sua rota preferida é uma fuga para outra realidade. Preposto, defronte a mesa, escolhe sempre o balcão. Tem um jeito miúdo e expresso de cultivar a sua vida degradante. É o resumo de uma obra mal acabada de Rodin, transformada por Andy e estampada por Romero, com as cores de Munch. O cigarro entre os dedos e o copo americano metade pinga, metade cinzano, alivia a dor, que não é nada passageira. É uma dor profunda, dor de alma, inexplicável. Só é aplacada pela cachaça que rechaça os seus sonhos e a vontade de ter vida, algum dia, nessa vida. Vida que é para ser vivida e não desperdiçada. Ninguém sabe quem foi, e porque foi. Todo mundo sabe quem é, e o que é. E é triste ver alguém que um dia foi jovial, alegre, hoje perdido no vazio que existe entre o tempo e o espaço. Descobrir que o tempo altivo e contínuo das palavras transformou um intelecto condensado em um ser reduzido a nada, a pó, sem massa cefálica e sem direito a opinar sobre nada... é acreditar que a esbórnia é logo ali. A vida é estranha. Como alguém pode ter tudo e ao mesmo tempo não ter nada? Existe dia para alguém que vive assim? Não. Seu estado é decrépito, e nem pensamento sobra. Tudo é podre. A começar pelo nome, Sugismundo, de sobrenome Manga. Beirando a morte, deixando de lado a matéria humana para os bichos, e nada de essência... Esquece que um dia foi alguém. E lá permanece, longínquo, moribundo ao bel prazer do vício noturno. Esquecido e jogado aos trapos como se fosse sobra... Vê no Estado um grande inimigo. Sabe que não lhe quer bem, não é bem vindo, nunca será aceito, as normas do sistema são outras. É um estorvo, a não ser para o dono do bar, que se alimenta dos centavos e das migalhas deixadas pelo pobre cliente. É um caso sério de amor e ódio. Não aguenta mais a ladainha alcoólica, porém, paciente, engole os sapos da cachaça... Tudo para que não afaste os fregueses regados com a velha cachaça barata, sempre com doses a mais e choros a menos. A boca seca e a garganta travada pedem um gole. Quando molhada, o universo se transforma. Os pólos não se cruzam. O belo não nada mais é que horrível, e assim o céu cai por terra, o amarelo do sol se ausenta. Tudo é cinza, enevoado, sem cores, sem alegria, compaixão ou proteção divina. O silêncio perpetua a sabedoria que um dia lhe foi tomada, subtraída, furtada pela paixão, destrutiva. O seu erro foi tolo. Guardou um tesouro precioso em praça pública, alguém furtou. Aprendeu que com o coração não se brinca. As emoções e os sentimentos furtados pela entrega total do coração a quem não mereceu, é a causa pela qual hoje é constantemente vilipendiado, dia após dia, minuto após minuto. A culpa lhe pertence... Soberano foi, soberano é. O peso de alguém que um dia foi infante, e que por tolo motivo deixou escorrer entre os dedos a vontade de lutar, de vencer... É um peso gigantesco para um simplório ébrio... alguém que iniciou com um trote na vida e terminou galopante. Não se chama José, e agora não dá mais. Seu orgulho é barato, fácil de comprar. Nunca será semelhante a um Vivaldi, a não ser pela matéria que irá apodrecer. Em um futuro próximo será jogado numa vala qualquer onde os vermes o aguardam, ansiosos. Os pensamentos derretidos pela cachaça, expressados em palavras desconexas, emolduradas em frases torturantes, refutam a luz do dia... Vive uma festa sem fim... A lua é cheia e vazia... Clama por ela... Urge pela noite e suspira na escuridão. Não compreende a ausência de luz como algo negativo. Sem esmero, aceita que sua escolha foi positiva, particular, racional, decidida. Escolha de mestre fracassado. Prefere ser aluno a professor, hoje não passa de vagabundo, transitório, esperando a nau à deriva, uma tábua de salvação. Não está preocupado com nada, espera sentado que a vida acabe... Sua essência ebulirá a qualquer momento... Enquanto isso, o que sobra é jogado aos porcos. Da cana até os bares reais da vida em busca de esperanças surreais, alimentando o vício implacável, destruindo a vida em andanças, sem direção, rumo ao nada, Sugismundo Manga simplesmente acende um cigarro. Perdido entre vida e morte, engolindo de cá e lá o gosto amargo da vida, vai minando a sua luz e o seu estado de pureza inicialmente adquirida. Não fará falta, exceto para dono do bar. Se morrer hoje, amanhã não passa do segundo dia. 





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