Não se sabe de quem foi a ideia de construir ali o cemitério da cidade. Era um pequeno vale bucólico, verde e aprazível, com uma grama macia, tendo a leste um pequeno bosque de carvalhos e a oeste, um inacreditável cipreste muito alto, guarda solitário do lugar, árvore que ninguém plantou. E assim foi, ficou sendo o campo-santo principal, sem cercas, nem portão de ferro com o tradicional “Requiescat in pace”. Só as tumbas horizontais, campas com laje em cima e o nome de cada inquilino que vinha habitar o lugar.
E como nem depois da morte se para de discriminar, como em um pacto implícito, não sujeito à lei, decreto ou determinação, estabeleceram-se certas divisões: à direita enterravam-se os ricos, à esquerda os pobres, lá no fundo os moradores mais antigos, à frente, os mais recentes. Assim, era comum, nesta parte derradeira, estarem sempre as divisórias com flores frescas, coroas, muitas palmas e perpétuas, dias seguidos, enquanto durava a saudade primeira, após a partida do ente querido. Depois, as flores eram trocadas semanalmente, mensalmente e enfim, quando passava o tempo, que tudo muda, o pequeno cemitério só ficava todo florido em Finados, aniversário comunitário dos mortos.
Muito próximo ao cemitério, um enorme barranco avisava que por ali se entrava no vale, cidade silenciosa de onde não se voltava.
O mundo andava esquisito, acontecendo apocalipticamente coisas, tempestades inesperadas, ventos furiosos que faziam até os ateus apelarem para um “valha-nos Deus!”, por via das dúvidas.
Foi assim naquela tarde.
Entardecia, quando o céu ficou avermelhado, depois acinzentou. Ninguém se preocupou muito, porque não era ainda o tempo das águas. De repente, sem trovões nem aviso-prévio, grandes nuvens de chumbo surgiram, baixaram sobre a cidade e uma chuva forte caiu, destemperada, ininterrupta, um dilúvio. A enxurrada veio até às portas, cresceu até a altura de metro nas paredes das casas, foi varrendo tudo, um rio em direção ao barranco do Vale dos Caídos.
O aguaceiro engrossou como bicho zangado e despencou lá do alto sobre o cemitério e arrancando arbustos, levando seixos e calhaus, até pedras maiores, fazendo enorme estrago, indo cair justamente na parte dos últimos enterrados, abrindo túmulos, caixões, carregando corpos enlameados, só se aquietando próximo ao bosque.
Quando a noite chegou, repentinamente a chuva parou, foram-se as nuvens pesadas e um céu muito limpo ousou ainda mostrar estrelas brilhantes, lá no alto, despreocupadas com a catástrofe.
Ninguém saiu de casa, assustados todos ainda com o inesperado aguaceiro e esperando que a água baixasse. No dia seguinte, com a vinda da luz, pôde-se examinar o tamanho dos estragos. Cada um ficou na sua casa aliviado, resguardado no aconchego morno da bonança, após a violência da tempestade.
O que ninguém viu foi um estranho conciliábulo, lá no bosque de carvalhos. Dizem que os corpos enlameados aos poucos acordaram, reuniram-se em um grande círculo, pálidos, mas de olhos muito acesos.
Não se sabe como explicar, mas liderados pelo último enterrado, os acordados começaram a tomar deliberações. Em pauta, resolver todos os problemas que os inaptos da primeira fase, ainda que vivos, não conseguiram solucionar. Era um insólito e andrajoso círculo de figuras esquálidas e escuras, pelo sombrio das grandes árvores. Resoluções tomadas, o estranho exército marchou rumo à cidade, para ali chegar, algumas horas depois.
Também não se pôde provar se é verdade, mas por onde seus pés passavam, a grama reverdecia, florinhas se abriam e um odor forte, não se sabe bem de quê, emanava dos corpos eretos, envolvendo-os com uma névoa.
Chegaram à cidade ao amanhecer. Antes do primeiro raio de sol, dirigiram-se, inicialmente, à Prefeitura.
Ninguém estava à porta para saudá-los, a não ser um cão enorme, sem dono, que por ali vivia, que tudo viu, entendeu e abanava a cauda, feliz, aprovando o acontecimento.
(*) Do livro A Senhora das Sombras, de Ely Vieitez Lisboa.
Segunda Edição, 2014, Funpec-Editora.
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