CAMINHOS- Rodrigo Luiz Ferreira

    A discussão acalorada e ruidosa já estava findando quando eu saí para o quintal com lágrimas brotando nos olhos e sentindo a mão fria do medo apertando meu coração. Estava descalça e segurava fortemente minha boneca contra o peito, buscando proteção. 
    Passei pelas roupas ainda molhadas estendidas no varal e sentei-me numa pilha de tijolos que ocupavam espaço no quintal de terra, junto com outros restos de construção. As sombras tremulantes das roupas pouco me protegiam do sol ardente. Sequei minhas lágrimas e, impaciente, fiquei batendo o pé numa pequenina poça de água lamacenta. Depois silêncio. Silêncio tenso e perturbador que quase deixava inaudível os soluços de minha mãe. Então a sombra dele foi se projetando nos lençóis e nas roupas que secavam ao vento. Senti raiva e 
abaixei a cabeça. Ele chegou.
    - "Layla, o que você está fazendo aí?"
    De pirraça, não respondi.
    - "Fica tristinha não. A mãe tá brava comigo, não é com você não."
    - "Porque você vai embora?", perguntei.
    Ele não me respondeu. Suspirou e sentou-se ao meu lado. Pousou sua mão em meu ombro, mas não pude ver seus olhos. Ele usava aqueles óculos escuros que eu detestava.
    - "Cuidado, hein? não vai sujar seu vestido nessa terra senão a mãe vai te bater".
    Baixei meus olhos e a tristeza voltou de mansinho. Apoiei minha cabeça no seu ombro. Ruídos de pia e panelas vinham de dentro da casa, junto com lamúrios e algumas fungadas de nariz de minha mãe.
    - "Eu tô indo embora, mas depois eu volto", ele disse.
    - " Vai embora não, Beto!!! Por favor!!! Fica com a gente!!! A mamãe tá triste!!!"
    - "Eu sei, eu sei!!", disse ele meio impaciente. "Mas tenho que ir pra ganhar dinheiro!!! Você não quer sair daqui e morar nu-ma casa melhor?? Não quer passear?? Não quer ter mais brinquedo?? Não quer comer aquelas comidas que passa na televisão?? 
    Tem que ter dinheiro pra isso!!"
    - "Mas eu não quero que você vá embora!"
    Abracei ele forte e algumas lágrimas voltaram a molhar meus olhos. Sua mão acariciou levemente meu cabelo.
    - "Calma, maninha...eu vou voltar. Logo logo eu volto."
    - "Promete?"
    - "Prometo. Vou voltar e tirar a gente daqui. Ainda vamos morar na capital, numa casa bonita. Vamos conhecer o mar. Você não quer conhecer o mar?"
    - "Quero".
    - Então!! Nossa vida vai ser bem melhor, você vai ver só."
    Aquela conversa aqueceu meu coração com esperança. A tensão, a tristeza e o medo ainda existiam, mas pareciam menores naquele instante.
    - "Tenho que ir", disse ele se erguendo apressado. "Tó. Pega aqui." Vi ele enfiando a mão no bolso da bermuda, tirando de lá um rolo de dinheiro de várias cores, presos num elástico ordinário.
    - "Pega!", ele ordenou. Senti medo.
    - "Beto, você tá roubando?" 
    Ele riu, debochado
    - "Não sou ladrão não, Layla!! Deixa de ser boba!
    Assustada, tentei me afastar. Ele agarrou meu pulso, depositou o bolo de notas na minha mão, fechando meus dedos.
    - "Entrega pra mãe depois".
    - "Ela vai me bater."
    - "Não vai não. Fala que fui eu que dei pra ela."
    Então ele sorriu. Eu não. Estava triste demais pra sorrir. Queria ter olhado seus olhos, mas aquelas lentes azuis espelhadas bloquearam meu desejo. Então ele afagou vagamente meus cabelos, virou-se e saiu apressado. Sentada naquela pilha de tijolos, com a boneca em uma das mãos e o dinheiro na outra, vi sua sombra mirrada dançando junto com as roupas ao vento e fi-cando cada vez menor até sumir. Minha mãe ainda chorava baixinho lá dentro de casa.
    Desde então eu nunca mais o vi. Alguns disseram que se tornou homem perigoso e temido em terras distantes. Outros, que estava preso na capital. A partir daí o silêncio e a apatia se tornaram companheiras quase constantes de minha mãe. Seu sorriso e alegria ficaram mais e mais raros. As promessas do meu irmão foram se apagando e se desbotando com o tempo, como fotografias velhas. E nos anos que se seguiram eu pouco pude mudar nossa vida, que continuou exatamente como estava: sem Beto, sem festas e sem cor.


Antologia Ponto & Vírgula - No. 13 - Pág. 59
Editora FUNPEC
Coordenação de Irene Coimbra





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