A vida exige coragem- Sonia Zaghetto


    Há uma zona de conforto chamada certeza e uma região assustadora que se chama verdade. Encarar esta última exige coragem, artigo sempre raro em todas as épocas da humanidade.
    Há gente demais trombeteando suas convicções. Em geral, enfrentam os outros armados de opi-niões desprovidas de base sólida ou de argumentos forjados em fontes contaminadas. Soterrados pela avalanche de informações que a Internet oferece, acabam alguns por se perder no matagal das certezas instantâneas. E haja patrulhamento.
    Tudo isso me ocorre quando espio diariamente as redes sociais e sua onisciência, mas neste tex-to refiro-me ao julgamento sumário que se abate sobre as dezenas de mulheres assassinadas ou agredi-das no Brasil diariamente.
    Não é natural que aceitemos passivamente este estado de coisas. É vergonhoso que, após cada notícia estarrecedora de agressão ou de morte, haja quem justifique a violência. Pior que isso é teste-munhar as próprias mulheres julgarem sem piedade a vítima, encontrando desculpas para a agressão e até minimizando as barbaridades. Tolas.
    Para além da definição biológica, é necessário ter uma consciência plena deste estado de absoluta graça, de intensidade e de desafios diários que é a condição feminina.
    Minha escritora favorita - Virginia Woolf - é permanente inspiração. Admiro nela a liberdade interna extremada, a capacidade de desafiar a adversidade de seu ambiente de mulher rica no início do século passado, lutando para estudar nas universidades exclusivas para homens; polemizando de igual para igual com adversários que sustentavam a risível tese de que nós, mulheres, somos intelectualmen-te inferiores. "Três Guinéus" é um livro que, por sua força estética, moral e argumentativa, deveria ser lido por toda mulher. "Um Quarto Todo Seu", também de Virginia, é minha bíblia, pois fala do espaço inviolável a que todos temos direito. Para criar, para escrever, para pensar sobre a vida, para nada fazer. Espaço necessário, indevassável, todo seu.
    No Brasil contemporâneo, quero tudo isso de que fala Virginia, mas quero também para mim e para as outras mulheres o direito à vida e à liberdade de ser o que bem entender (recatada, empresária, mãe em tempo integral, workaholic, jogadora de futebol, "do lar", perua, periguete, funkeira, motorista de caminhão ou engenheira da computação).
    Quero essa liberdade inteira, que se permite dizer não; que escolhe profissões e parceiros; que termina um casamento quando acha necessário; que põe fim a um relacionamento abusivo; que toma seu destino nas próprias mãos. A liberdade que luta apenas pela verdade e não se dobra perante as cer-tezas alheias. A liberdade de escolher e não pagar por isso com a própria vida.
    Ah, antes que eu esqueça: não confunda meu texto com as ações cosméticas de meia dúzia de millennials de axilas não depiladas e adoradoras de cansativos jargões. A luta aqui é pelo combate à violência inaceitável que alcança a nós, mulheres. Seja aqui no Brasil, onde nos espancar e matar vai se tornando perigosamente banal; seja em alguns países árabes, onde mulher sequer pode dirigir um car-ro; seja na Índia, onde estupros coletivos e casamentos forçados ainda perduram; seja nos países desen-volvidos onde a violência doméstica fica restrita a quatro paredes; seja nos países em que casamentos com crianças, mutilação genital e sequestro de garotas pelo Boko Haram dão a este planeta, em pleno século XXI, uns ares de Idade Média.
    Esta luta, acredite-me, começa em nós mesmas. E o passo inicial se chama solidariedade perante a bofetada, o murro na cara, o nariz sangrando, a roupa empapada de sangue, o corpo estendido no chão. Coragem, portanto.


Crônica de Sonia Zaghetto, em Destaque, na 44a. Revista Ponto & Vírgula - Página 12



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