A última seresta- Nancy Araújo de Souza

                          
            Sua morte não chegou a causar espanto para os amigos. Já era esperada havia algum tempo, pois ele não tinha mais idade nem saúde para aquela estravagância. Sair com o violão cantando sozinho, nas madrugadas pela cidade, era maluquice... Amigos o alertavam, pedindo que parasse com aquilo, mas não os ouvia e continuava, irredutível. Algumas pessoas da cidade diziam que aquilo era coisa de bêbado, entretanto, outras afirmavam que ele estava sempre sóbrio naquelas noitadas. Saiu mais uma vez para sua serenata solitária, assim que a chuva parou naquela noite escura.
            O violão, desafinado e sujo de barro, que estava ao lado do corpo, foi retirado por um dos amigos, o primeiro  a chegar assim que a notícia se espalhou, e levado dali com o cuidado que merecia por tantos anos de companheirismo. Parecia que um era parte do outro. Os dois uma coisa só, um só corpo quando o abraçava para tocar.
            O dia amanheceu ainda cinzento, e a empregada chegou para trabalhar como sempre fazia, bem cedo. Mal abriu o portão viu o corpo estendido sobre o canteiro de margaridas no jardim da casa onde trabalhava, uma daquelas onde ele costumava fazer serenatas solitárias. A vizinhança acordou com os gritos e as pessoas abriram as janelas espantadas e curiosas. Algumas correram para ver o que acontecia. A moça, parada no meio do jardim, gritava desesperada com as mãos na cabeça. A patroa despertou assustada com o barulho, saiu do quarto e se dirigiu à sala ainda vestindo o robe sobre a camisola. Abriu a porta e se não se apoiasse rapidamente no portal teria caído desmaiada ao ver a cena. Ficou petrificada, pálida, sem conseguir esboçar palavra. As vizinhas se aproximaram e a ajudaram a se sentar no sofá mais próximo. A empregada, que já não gritava mais, entrou e foi tomar um copo de água providenciando outro para a patroa que, com as mãos trêmulas, tomou um pouco derramando quase a metade na roupa. Ficou em estado de choque sem conseguir falar.  Alguém tomou a iniciativa de ligar para sua irmã que rapidamente chegou com o marido, já que os dois filhos, estavam fora, um morava na fazenda e o outro estava em viagem de férias com a famíla. O cunhado, imediatamente chamou o médico que prescreveu um calmante e pediu para que a deixassem descansar. A irmã levou-a para o quarto e a fez se deitar.
            Os amigos do morto ao saberem do ocorrido, tomaram  as providências necessárias e o médico que fora chamado para  atender a dona da casa, também forneceu o atestado de óbito onde escreveu a causa da morte: infarto fulminante. O corpo foi levado pelos chorosos companheiros de tantos anos e seus familiares foram avisados do ocorrido. Parentes e amigos se juntaram na tristeza. Reclamaram por ele não os ouvir quando pediam para parar com aquela mania. Um dizia que ele não tinha juízo, outro que não entendia por que não se casara, pois se tivesse uma família podia ter uma vida diferente. Surgiu a suspeita de doença grave que ele não havia contado a ninguém.  Alguém sugeriu que ele tinha um amor secreto, por isso não se casara e mantinha aquele hábito estranho de fazer serenata sozinho. Talvez fosse uma daquelas mulheres das casas onde cantava sempre, mas como cantava em muitas janelas, como saber quem era a sua preferida?  O enterro foi marcado para o entardecer.
            Ele vivia sozinho, desde a morte dos pais. Uma casa simples, bem antiga ao lado da oficina onde trabalhava e recebia amigos para conversar. O violão ficava ali, pedurado na parede para quando os amigos chegassem. Cachaça também não faltava.  Gostavam de lembrar a juventude cantando canções antigas de quando saíam em grupo para fazer serenatas para as mocinhas. Bons tempos, eles diziam e lembravam casos de namoros que resultaram em casamentos, outros que terminaram sem futuro, e histórias tristes de amores probidos. Riam muito e depois, meio bêbados, iam, cada um para sua casa, encontrar a família enquanto ele se retirava para sua solidão. Tarde da noite, saía com o violão a cantar pelas ruas parando nas janelas que nunca se abriam para um agradecimento. Caminhava solitário, pelas ruas nas noites de lua cheia ou de total escuridão. Só não saía na chuva e também evitava sair em noites muito frias depois de uma pneumonia que quase o matou. A cidade se acostumou a esses passeios noturnos e ninguém o incomodava, era respeitado. Algumas vezes se encontrava com grupos de rapazes voltando de uma festa, cumprimentavam-se discretamente e cada um seguia seu caminho.
            A oficina, onde fazia todo tipo de conserto doméstico, não lhe rendia grande coisa, mas ele sempre podia contar com a ajuda dos familiares e dos amigos. Às vezes bebia além da conta e não trabalhava por dias, nem fazia serenatas. Depois voltava ao normal. Os amigos, quando percebiam a situação, deixavam-lhe, disfarçadamente, algum dinheiro ao visitá-lo na oficina jamais comentando esse ato. Ele, por sua vez, nunca agradecia.
            A pequena casa ficou cheia para o velório. Pessoas se espalharam pelo quintal, aproveitando para colher as frutas  que a chuva da noite anterior havia derrubado. Os familiares serviam o cafezinho aos presentes. Os amigos se reuniram ao lado do caixao. Um deles trouxe o violão já limpo da lama e afinado, começou a tocar e todos se puseram a cantar baixinho as canções que ele cantava nas noites de serenata. Muita gente chorava emocionada.
            No final da tarde, o padre apareceu para as orações  habituais e em seguida  o cortejo seguiu para o cemitério. Os amigos continuaram a cantoria à beira do túmulo. Foi uma despedida emocionante ao seresteiro solitário.
            A dona da casa, onde o corpo foi encontrado estirado no jardim, passado o efeito do calmante, acordou,  recusou  qualquer alimento e voltou a dormir depois de um banho. Não quis conversar com ninguém. O filho e a nora chegaram da fazenda.  Ela, ainda abalada com o acontecimento, ouviu os relatos e não soube explicar a razão do homem ter sido encontra-do no seu jardim. Havia dormido bem, nem tinha percebido nenhuma serenata. Indagada se pretendia ir ao enterro, achou melhor não ir, não se sentia bem ainda. Só queria a companhia do filho e da nora que ficariam para dormir. A empregada fez todo o serviço e à tardinha voltou para casa. A irmã e o marido  saíram para acompanhar o enterro e depois foram para casa descansar.
            A mulher levantou-se e conseguiu tomar um caldo já à noitinha, em companhia do casal e voltou a se deitar. Os dois ainda ficaram bom tempo fazendo-lhe companhia, depois se retiraram para o quarto preparado pela empregada.
            Quando o movimento da casa cessou completamente, a mulher se levantou, trancou a porta do quarto e foi buscar na gaveta da cômoda os pedaços de papel que levou aos lábios começando a chorar. Não estavam datados mas ela se lembrava da ocasão em que recebera cada um. O último era de dois dias atrás. O primeiro era de muitos anos, assim que enviu-vara. Foi deixado na janela do seu quarto e dizia apenas “Sempre te amei”. Ela não reconhecera a letra, mas sabia quem o deixara ali depois de uma serenata. Ele sempre cantava na sua janela mesmo quando o marido ainda vivia, o que não causava estranheza visto que cantava em muitas outras janelas. Nem sabia por que guardara o bilhete. Depois vieram outros, sem muita frequência, mas sempre falando de amor.
            Passou a esperar a serenata e o bilhete. Nunca respondera, nem comentara com ninguém. A história deles havia terminado ainda na juventude porque o pai não permitira o namoro que mal começara. Pouca gente soube que eles tiveram uma aproximação. Para o pai dela, o rapaz era um vagabundo, um rapaz que não tinha futuro, sempre com aquele violão e nem tinha uma profissão que lhe permitisse sustentar família. Ela não questionara, obedecera calada. Afastara-se dele e acabara casando-se com o fazendeiro. Casara por amor. Fora feliz.
            Pegou cada um dos bihetes, e foi lendo devagar enquanto chorava. No dia do seu aniversário, no ano anterior, ele escrevera que a esperaria enquanto vivesse e pedia uma chance, um sinal de que podia ter esperança. Ao ler aquelas palavras, chorou muito, colocou o pedaço de papel dentro da camisola e ficou segurando-o sobre o coração. Arrependeu-se de não ter respondido, podia ter dado uma chance para os dois serem felizes e não fez isso. Não se perdoava agora.
            Decidiu que no dia seguinte, ou depois que o casal voltasse para a fazenda iria queimar todos os bilhetes, ninguém podia saber deles. Apanhou o útimo bilhete que encontrara dois dias atrás e leu e releu: “Não quero morrer sem falar no seu ouvido que te amei a vida inteira. Que ainda te amo”.
            Enxugou os olhos e disse baixinho ”Te amo”. As lágrimas rolaram enquanto ela se lembrava da noite anterior, do momento em que ele começara a cantar baixinho e ela abrindo uma fresta da janela avisara quase sussurrando: “A porta está aberta”. Saira do quarto e o encontrara na sala. Fora a noite mais linda da sua vida. Nunca pensara que um homem pudesse ser tão delicado e amoroso. Amou aquele homem e foi amada como nunca pensara que fosse possível. Dormiu nos seus braços, cansada e feliz, depois, despertando, pedira que ele fosse embora antes do amanhecer. Agora pensava que ele devia ter pedido para ficar, mas não disse nada, apenas a beijou pela última vez, saiu da cama, vestiu a roupa e se foi. Quando ele saiu, ela trancou a porta, entrou no quarto e  voltou a dormir, o sono mais feliz da sua vida, até a empregada começar a gritar...











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