A Despedida- Por Aline de Oliveira Cláudio

 

    A música “Eduardo e Mônica” de Legião Urbana nunca havia feito muito sentido para ele. Como alguém poderia se envolver com alguém tão diferente de si mesmo? Mas gostava da melodia, então não se importou quando a música começou a tocar em seus fones de ouvido, no metrô.
    Era sexta-feira e chovia. Ao chegar a casa, acendeu somente os três abajures da sala. Escolheu um dos discos de Hank Jones, para sua vitrola, comprada em um antiquário há alguns anos, na Vila Madalena. O lirismo do músico norte-americano o fascinava. Normalmente, após um dia tão estressante como aquele, escolheria John Coltrane. Dizia que o acalmava. Mas aquele dia, em especial, escolheu Jones. Com a gravata afrouxada, já sem os sapatos, e uma taça de vinho na mão esquerda, caiu no sofá. “Um bom vinho e uma boa música. Perfeita noite de sexta-feira.” pensou. Era muito clichê e ele sabia disso. O celular vibrou com uma mensagem. Era ela. Dizia que no dia seguinte buscaria a caixa restante. “Ok” respondeu.
    Do sofá, viu a caixa com os pertences dela. Sabia o que havia dentro: duas camisetas, uma branca e outra azul, uma escova de dentes verde, uma bola de baseball comprada em Nova Iorque em 2007, autografada por Babe Ruth, nos anos 40. A assinatura, falsa, não importava. Três grampos médios para cabelos e 1 cartão postal de Salvador, datado de 1953, que seu pai havia enviado a sua mãe, quando ainda namoravam. Ele sabia que a única coisa que realmente importava para ela era o cartão postal pois o envolvera em uma folha plástica para que tivesse a certeza de que nenhum acidente o comprometesse.
    Dormiu no sofá. Acordou no meio da madrugada. A música já não tocava mais. Agora, só o silêncio reinava no apartamento. A chuva continuava fraca e persistente. O sofá confortável e a temperatura ideal do ambiente, mais o convidavam a continuar sua noite ali na sala. Dormiu.
Acordou na manhã fria de sábado, com a vibração do celular. Era ela. “Estou aqui embaixo”. “Já desço”.
    Na recepção do prédio, esperava sentada. Vestida com várias camadas de roupas, só seu rosto estava desprotegido. Ele sorriu ao ver seu gorro de ursinho panda. Ela entendeu o motivo do sorriso. “Eu sei! Não encontrei meu gorro ‘de adulto’.” Sorriu.
Pegou a caixa, abraçou-o, carinhosamente, agradeceu e foi embora. Quando já não podia vê-la mais, entrou no elevador e voltou para o apartamento.
    Ele gostava de jazz, ela de blues. Faziam um belo par. Seu filme nacional preferido era Lavoura Arcaica, o dela O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro. Tinham gostos parecidos. Cozinhavam juntos, gostavam dos mesmos restaurantes e preferiam chá a café. Queriam ter três filhos. Corriam juntos todos os dias, exceto sextas. Entendiam suas piadas, reclamavam de suas manias e discutiam sobre quem lavaria a louça. O respeito era mútuo e o amor imensurável.
Quando abriu a porta do apartamento, sentiu-se triste. Estava só. A foto dos dois juntos, no Ano Novo de 2010, em Gramado, que ficava no porta-retratos, na estante da sala, o fez suspirar. Com o celular na mão, fez uma ligação.
    “Amor, ela veio buscar as coisas.” “Oi amor, você está bem?” “Sim, mas sabe, foram 10 anos juntos.” “Eu sei. Mas lembre-se que agora nós começamos uma vida juntos.” “Eu sei, e quando me lembro disso, quase não cabe tanta felicidade em mim.” “Daqui a pouco levo minhas coisas.”
Desligaram dizendo “eu te amo”.
    Após 10 anos morando junto de sua melhor amiga, ele finalmente iria morar com seu melhor amigo, o homem e o amor de sua vida. Ela havia sido a primeira a quem ele contara que estava apaixonado e a primeira a quem contara que queriam morar juntos. E, como de costume, fora quem mais o apoiara nas duas decisões. Ligou para ela.
    “Eu já estou com saudades.” “Eu também, querido.” “Como é o novo apartamento?” “Um ovinho de codorna.”
    Os dois riram.
“O filme começa às 20h?” “Isso. Te vejo às 19h então, ok?” “Tudo bem. Até a noite.” “Até.” “Liz?” “Oi?” “‘Eduardo e Mônica’ até que faz algum sentido, né?” “‘E quem um dia irá dizer que existe razão nas coisas feitas pelo coração?’ É, até que faz.”




 

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