Já foi vaiado?- Fernando de Oliveira Cláudio


    Sim. Já fui vaiado por mais de três mil pessoas numa festa da USP do curso de enfermagem, no salão que fica embaixo do campo do Botafogo. E contar sobre isso é libertador.
Calma que essa história tem começo, meio e fim.
    Durante 20 anos não consegui digerir muito bem essa história. A história da barca furada. E essa semana conversando com um amigo de longa data lembramo-nos do que aconteceu e dei boas risadas.
    A história começa bem e termina mal. Ou você acha que tudo na vida dá certo?
Recebemos um convite para tocar numa festa da enfermagem da USP. Somente duas bandas na noite. Um trio de forró e a nossa banda de rock'n'roll autoral.
    O lugar da festa seria no salão do campo do Botafogo, na Ribeirânia. Durante negociação com o produtor e responsável pelo som, cada um pediu o equipamento que queria. Eu pedi um mesaboogie e um shure. O produtor vendeu salmão e abraçamos sardinha.
    Quando você pensar que nada pode piorar, lembre-se que nem tudo é tão ruim que não possa piorar. 
    Três mil pessoas, evento lotado, o público preparado para pegação, a galera bêbada querendo ouvir forró para dançar coladinho e beijar muito e todos em polvorosa.
     Qual banda foi escolhida para abrir para o trio Virgulino de forró? 
    A banda Plano B.
    Alguma coisa me dizia que a noite não seria lá aquelas coisas e mesmo sem lenço e sem documento embarcamos no barco mais furado da minha vida.
    O trio de forró se virava com um triângulo, uma zabumba e um violão de nylon com um cubo Wattson. E a gente? Puts! Sem comentários.
    Não conseguimos passar o som e hoje sei que foi proposital. O cara do forró dava nó em cobra. E a gente só queria quebrar tudo tocando o nosso som para uma galera que fosse pensar e refletir sobre as nossas letras.
    Quando chegou a nossa hora de tocar o povo já estava bêbado pedindo forró. Subimos no palco e quando você percebe que está na chuva, enfia o pé na jaca e seja o que Deus quiser. Foi o que a gente fez.
    A banda Plano B estava à frente do seu tempo. Nossas composições eram provocações, batíamos de frente com o pensamento social que prevalecia na época. Não havia preconceito ou limite, não existia freio. A temática abordada era diversa, de violência doméstica até tabus como suicídio, morte, acidente, drogas, afronta política e porque não canções de amor? Brutos também amam.
    Mas ali não era o nosso lugar e nem a hora de tocar o nosso som. Ali era a hora do rock comercial vendável. O velho repertório comercial de rock que agrada a todos. Mas a banda Plano B nunca se vendeu, sempre foi autêntica, intensa e verdadeira. Por ser autoral e perceber que estávamos num mato sem cachorro, resolvemos encarar o barco.
        A festa era da enfermagem da USP mas tinha sido liberada para qualquer um (convite caro, playboyzada da época geral). O que atraiu o público foi a chamada "muita mulher para pouco homem".
    Subi no palco sabendo que ia dar merda. E deu merda. A galera queria forró, não queria ouvir uma banda de rock autoral. Não era o lugar e fomos para o abate, enganados. Nessa época o trio tinha virado um quarteto pois colocamos um violino na jogada. E modéstia parte, o nosso som com violino ficou ainda mais foda.
    Subimos no palco e colocamos toda a nossa energia na primeira música. O pessoal escutou calado. Quando terminamos, o pessoal começou a gritar FORRÓ FORRÓ FORRÓ. Na minha frente tinha uma garota de rasteirinha e cabelo comprido com vestido que gritou para mim, com seu olhar fulminante SAI DAÍ SEU MERDA, A GENTE QUER FORRÓ. Eu não sabia como reagir e começamos a tocar a segunda música. Quando terminamos, o grito por forró ficou mais alto e a galera começou a vaiar. Meu Deus, que desespero! Sem dar tempo para as vaias começamos a tocar a terceira música e a galera do forró enfurecida começou a jogar latinhas e garrafinhas d'água gritando forró e nesse momento entendemos a merda que tínhamos feito ao aceitar dividir a noite com o trio forrozeiro e ficou claro com a chuva de objetos que ali não éramos bem vindos. Terminamos a terceira música e saímos do palco.
    Foram apenas três músicas e a pior sensação de todas. A sensação de ser vaiado e ter recebido latadas e garrafadas. A noite foi horrível. Algumas pessoas disseram que gostaram do nosso som mas como a galera queria forró, qualquer coisa que não fosse forró não seria bem vinda. A galera não perdoa.
    Depois o pessoal fala que a galera do rock é violenta. Mas por experiência própria posso garantir que a galera do forró é a mais perigosa de todas as tribos.
    Aquela noite foi inesquecível. Já faz 20 anos e ainda sou traumatizado com forró. Aquela noite começou bem e terminou uma merda. Fiquei tão revoltado com a produção do show que não honrou o seu compromisso e também por não ter jogado limpo conosco que bebi tanto naquela noite para tentar esquecer o que acontecera que acordei na calçada de casa
    No fundo para mim foi uma grande conquista, ser vaiado por umas três mil pessoas foi inesquecível. Hoje se começa a tocar forró no rádio eu já fico com medo
    Brincadeiras a parte, tudo isso foi sério. O maior aprendizado que tive nessa noite foi "nunca divida um palco com forrozeiros e uma tribo fanática"
    Hoje o pessoal diz que bolsominions são fanáticos. Sabe nada inocente. Vocês não conheceram a turma fanática do forró que estava na festa da USP aquele dia.
    Vergonha? Muita, demais, até no talo. Mas eu não gosto de passar vergonha no débito, quando passo é sempre no crédito e valor alto.
    Demorei 20 anos para tocar nesse assunto. Essa noite ficou intocável aqui dentro. E toda vez que toco nesse assunto me dá uma crise de risada que não consigo segurar, dói a barriga de nervoso.


 

Comentários