Sim. Já fui vaiado por mais de três mil pessoas numa festa da USP do curso de enfermagem, no salão que fica embaixo do campo do Botafogo. E contar sobre isso é libertador.Calma que essa história tem começo, meio e fim.Durante 20 anos não consegui digerir muito bem essa história. A história da barca furada. E essa semana conversando com um amigo de longa data lembramo-nos do que aconteceu e dei boas risadas.A história começa bem e termina mal. Ou você acha que tudo na vida dá certo?Recebemos um convite para tocar numa festa da enfermagem da USP. Somente duas bandas na noite. Um trio de forró e a nossa banda de rock'n'roll autoral.O lugar da festa seria no salão do campo do Botafogo, na Ribeirânia. Durante negociação com o produtor e responsável pelo som, cada um pediu o equipamento que queria. Eu pedi um mesaboogie e um shure. O produtor vendeu salmão e abraçamos sardinha.Quando você pensar que nada pode piorar, lembre-se que nem tudo é tão ruim que não possa piorar.
Três mil pessoas, evento lotado, o público preparado para pegação, a galera bêbada querendo ouvir forró para dançar coladinho e beijar muito e todos em polvorosa.
Qual banda foi escolhida para abrir para o trio Virgulino de forró?A banda Plano B.Alguma coisa me dizia que a noite não seria lá aquelas coisas e mesmo sem lenço e sem documento embarcamos no barco mais furado da minha vida.O trio de forró se virava com um triângulo, uma zabumba e um violão de nylon com um cubo Wattson. E a gente? Puts! Sem comentários.Não conseguimos passar o som e hoje sei que foi proposital. O cara do forró dava nó em cobra. E a gente só queria quebrar tudo tocando o nosso som para uma galera que fosse pensar e refletir sobre as nossas letras.Quando chegou a nossa hora de tocar o povo já estava bêbado pedindo forró. Subimos no palco e quando você percebe que está na chuva, enfia o pé na jaca e seja o que Deus quiser. Foi o que a gente fez.A banda Plano B estava à frente do seu tempo. Nossas composições eram provocações, batíamos de frente com o pensamento social que prevalecia na época. Não havia preconceito ou limite, não existia freio. A temática abordada era diversa, de violência doméstica até tabus como suicídio, morte, acidente, drogas, afronta política e porque não canções de amor? Brutos também amam.Mas ali não era o nosso lugar e nem a hora de tocar o nosso som. Ali era a hora do rock comercial vendável. O velho repertório comercial de rock que agrada a todos. Mas a banda Plano B nunca se vendeu, sempre foi autêntica, intensa e verdadeira. Por ser autoral e perceber que estávamos num mato sem cachorro, resolvemos encarar o barco.
A festa era da enfermagem da USP mas tinha sido liberada para qualquer um (convite caro, playboyzada da época geral). O que atraiu o público foi a chamada "muita mulher para pouco homem".Subi no palco sabendo que ia dar merda. E deu merda. A galera queria forró, não queria ouvir uma banda de rock autoral. Não era o lugar e fomos para o abate, enganados. Nessa época o trio tinha virado um quarteto pois colocamos um violino na jogada. E modéstia parte, o nosso som com violino ficou ainda mais foda.Subimos no palco e colocamos toda a nossa energia na primeira música. O pessoal escutou calado. Quando terminamos, o pessoal começou a gritar FORRÓ FORRÓ FORRÓ. Na minha frente tinha uma garota de rasteirinha e cabelo comprido com vestido que gritou para mim, com seu olhar fulminante SAI DAÍ SEU MERDA, A GENTE QUER FORRÓ. Eu não sabia como reagir e começamos a tocar a segunda música. Quando terminamos, o grito por forró ficou mais alto e a galera começou a vaiar. Meu Deus, que desespero! Sem dar tempo para as vaias começamos a tocar a terceira música e a galera do forró enfurecida começou a jogar latinhas e garrafinhas d'água gritando forró e nesse momento entendemos a merda que tínhamos feito ao aceitar dividir a noite com o trio forrozeiro e ficou claro com a chuva de objetos que ali não éramos bem vindos. Terminamos a terceira música e saímos do palco.Foram apenas três músicas e a pior sensação de todas. A sensação de ser vaiado e ter recebido latadas e garrafadas. A noite foi horrível. Algumas pessoas disseram que gostaram do nosso som mas como a galera queria forró, qualquer coisa que não fosse forró não seria bem vinda. A galera não perdoa.Depois o pessoal fala que a galera do rock é violenta. Mas por experiência própria posso garantir que a galera do forró é a mais perigosa de todas as tribos.Aquela noite foi inesquecível. Já faz 20 anos e ainda sou traumatizado com forró. Aquela noite começou bem e terminou uma merda. Fiquei tão revoltado com a produção do show que não honrou o seu compromisso e também por não ter jogado limpo conosco que bebi tanto naquela noite para tentar esquecer o que acontecera que acordei na calçada de casaNo fundo para mim foi uma grande conquista, ser vaiado por umas três mil pessoas foi inesquecível. Hoje se começa a tocar forró no rádio eu já fico com medoBrincadeiras a parte, tudo isso foi sério. O maior aprendizado que tive nessa noite foi "nunca divida um palco com forrozeiros e uma tribo fanática"Hoje o pessoal diz que bolsominions são fanáticos. Sabe nada inocente. Vocês não conheceram a turma fanática do forró que estava na festa da USP aquele dia.Vergonha? Muita, demais, até no talo. Mas eu não gosto de passar vergonha no débito, quando passo é sempre no crédito e valor alto.Demorei 20 anos para tocar nesse assunto. Essa noite ficou intocável aqui dentro. E toda vez que toco nesse assunto me dá uma crise de risada que não consigo segurar, dói a barriga de nervoso.
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