Os dois velhinhos- Nely Cyrino de Mello

     Não saberia precisar-lhes as idades: 70,80...? Todas as manhãs, ele colocava o lixo na rua e recolhia o jornal; ela molhava o jardim, economizando cada gota d'água.
   Dividiam as despesas, ele pagava a luz e ela, a água. Ele vigiava e apagava as lâmpadas que ela esquecia acesas; ela controlava as torneiras, o chuveiro, cronometrando os banhos. Aposentados pelo INSS, moravam numa casa simples, comprada, a duras penas, no decorrer da vida.
    Aos poucos, foram perdendo a audição, apresentando lapsos de memória e os netos se divertiam com as conversas desencontradas.
    Os três filhos revezavam - se nas visitas e reuniam-se, cada vez mais raramente. Naquela noite, cuidando que os dois já estivessem adormecidos, as palavras rolaram mais altas.
    - Eu não posso levá-los, dizia a filha, sabem que só tenho dois quartos e o noivo da Valéria, passa o fim de semana em casa.
    - Eu também não, falava o mais velho. Moro no 15o andar e eles têm pavor de elevadores, desde que uma conhecida morreu em um deles.
    - E eu, então, retrucou o caçula: que farei, se descobrirem que sou gay e recebo meu namorado? Terão ataques cardíacos.
    Os dois velhinhos, em pé, atrás da porta, não ouviram tudo mas entenderam que era deles que falavam.
    - Xi, minha velha, estamos sendo motivo de discórdia.
    - O quê?
    - Dando trabalho aos meninos.
    - O quê?
    - ESTAMOS COM A VALIDADE VENCIDA!
    - Mãe, pai, estão brigando?
    - Sua mãe, cada vez, mais surda.
    - Durmam, já é tarde, vamos indo. (Será que ouviram?)
    E, naquela noite, como sempre faziam, dormiram de mãos dadas, contemplando o Anjo da            Guarda, na parede à frente. (Compraram o quadro em sua lua de mel)
💞
    - Pai, mãe, acordem. Vim preparar seu café da manhã (a filha, com remorso)
    - Mãe? Pai? ... Meu Deus, cadê o anjo? (a moldura vazia, na parede)
    Os dois, com a placidez das crianças nas faces inertes, evolaram-se para onde não há dores, nem contas a pagar, nem desassossego.


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