Cena inesperada- Jugurta de Carvalho Lisboa


     Naquele dia, apesar do tempo chuvoso e frio, tive que renunciar ao aconchego da cama para estar bem mais cedo no centro da cidade, onde participaria de importante reunião de trabalho. 
     Há mais de dez anos, fazia sempre o mesmo trajeto. Embora o caminho fosse um pouco mais longo, por ali não havia semáforo nem os famigerados radares escondidos. A paisagem, a cada dia, tornava-se mais alegre com o crescimento rápido das várias espécies de árvores que faziam parte da recuperação da mata ciliar, ao longo do ribeirão de águas turvas e turbulentas. 
    Dirigia com a atenção voltada para possível travessia de algum animal na pista. Era comum a presença de cavalos, gado ou cachorro naquele local. Foi quando vi, a certa distância, um homem que caminhava no mesmo sentido. Ao aproximar-me verifiquei tratar-se de uma pessoa de idade avançada fazendo sinal para o motorista do fusca, que me ultrapassou e parou a uns cem metros na frente. Observei, pelo retrovisor, o velho a correr com certa dificuldade, em passos arrastados e trôpegos para chegar até o veículo que o aguardava.
    Diante daquela cena fiquei revoltado com a falta de sensibilidade do motorista que, ao invés de dar uma ré, permaneceu parado vendo o pobre homem em desesperada e cambaleante corrida. Reduzi a velocidade e continuei observando. A cena foi inusitada. O velho, agora diante do fusca com a porta aberta, sacou de um enorme facão fazendo sua lâmina reluzir sob a manhã ensolarada e tentou desferir um golpe mortal no motorista. Nesse momento, ainda através do retrovisor, após ouvir o estampido de um tiro, vi o velho deixar cair o facão e seu corpo desabar sobre a enorme lâmina que ultrapassou seu abdome. 
    Um tanto assustado, acelerei meu carro. 
    A reunião já havia começado. Era visível minha expressão de espanto. Contei o que havia presenciado. Ficaram todos atônitos. 
    No dia seguinte, a crônica policial estampava a notícia com fotos e a manchete: “Avô, na tentativa de vingança contra o estuprador de sua neta, morre baleado e, na queda, tem o abdome atravessado pela lâmina da própria arma”.


Comentários