Trecho da coletânea “Lisette Maris em seu endereço de inverno” de Perce Polegatto
Magra e arcada, a velha de pele ressequida e cabelos grisalhos esperava por mim junto ao portão de grade. Malas prontas, mudança. Lenço, soluços. E um fio de pranto amargurado que mais lhe cavava os olhos cinzentos. Eu a abracei como pude, pedi que não tornasse a chorar, pois pessoas que choram me incomodam muito.
“Ainda está lá?”, perguntei.
Ela assentiu, forjou um gesto com o lenço.
Entrei a percorrer sozinho o corredor de muros descascados que se faziam mais úmidos e limosos conforme me aproximavam a casa.
A varanda, a voracidade dos anos: reconheci canteiros e caramanchões, vasos, suportes, onde antes se distribuíam a trama das trepadeiras, samambaias suspensas, delicadas avencas e ervas sem nome. Nenhuma flor. Houve um tempo em que mal se poderia conceber essa varanda sem seu arranjo de malvas, camélias, narcisos e lírios protegidos pela sebe aparada, dominadora, que em minha infância imaginava eterna. Entre as plantas que obscureciam o alpendre, havia ainda um resto de manhã, embora eu pudesse entrever ali a escuridão de todas as florestas.
Dois degraus ao que pretende entrar. Portas que nada mais escondem. Janelas que receio poderão sufocar-me. Colunas cansadas como à espera de mais esse dia apenas, para então esfacelarem-se, feitas ao tempo. A entrada da sala, ponto de partida. Primeiro degrau para o labirinto de cômodos na penumbra. Venezianas todas cerradas, simulando noite lá dentro. Os quartos sucedendo-se numa planta de cortes assimétricos, irregulares, que se desdobravam, se afunilavam, por vezes comportando duas ou três entradas, mas nenhuma janela. Outras vezes um quarto eram muitos, e cabiam parcialmente uns nos outros como se se houvessem invadido com o passar do tempo, avançando paredes e saliências. Enquanto me envolviam tais sombras, pensei que vivera ali alguns anos despreocupados, que entendia felizes, e que o resto de minha vida tinha sido apenas fugir. Eu conhecia cada corredor interrompido, cada quina desse labirinto, o labirinto de pedras que fora minha vida nessa casa. E a casa de pedras que servira aos sonhos nascidos de minha infância.
Sendo o mais velho, cabia a mim enfrentar e destruir o que ainda se instalava no fundo do último quarto, cuja parede fazia fronteira com noites de ramos e corujas esquecidas. A casa era tão grande que tinha uma face para o dia, fundos para a noite. Degraus da plataforma, trilhos abandonados de uma estação que eu amava observar e de onde partiam trens para todas as viagens. Cabia a mim eliminar de uma vez para sempre o que havia sido a causa dos sofrimentos de minha mãe, a ruína de meu pai, a morte violenta de minha irmã, o isolamento gradual e definitivo de meu irmão.
Não me faltavam coragem nem ódio. Mas prosseguia com cautela, tocando os batentes, quarto após outro. Não ia armado, claro. Só o que levava era minha coragem – que outras armas se podem usar contra um demônio? Principalmente contra aquele, conhecido como um dos mais terríveis, cujo nome todos evitavam pronunciar e a quem todas as correntes e novenas do mundo nunca haviam sido suficientes para intimidar.
Laranjas e rosas tremulavam nas paredes do último quarto. Uma claridade tênue, refletida no ocre das venezianas, transmudando-se a um verde esmaecido, tornando ao musgo, repassando sépias antes de reassumir encarnados ameaçadores: ele estava ali. Um de nós seria aniquilado. Minha impetuosidade e meu ódio crescente, tingido pelas lembranças do que havia torturado nossa família durante todos aqueles anos, naturalmente me faziam crer que seria eu o vencedor. Mas ao chegar à entrada do quarto, alguma coisa invadiu-me feito uma onda morna e nauseante, com isso atenuando minha fúria, o alicerce de minha coragem, e fazendo estremecer minha convicção. Ele estava ali. Era, na verdade, apenas um rosto no chão de tijolos, uma máscara luminosa de feições imprecisas, contida em um círculo de cinco círios acesos. Pareceu-me então ouvir um grito distante, surdo e contínuo, vindo talvez do outro lado da noite. Havia nesse rosto certa semelhança com o queixo de meu irmão. O nariz lembrava o de minha mãe. Cabelos de minha irmã, a boca de meu pai. E os olhos que me fulminavam com o mesmo ódio, a mesma miopia: justamente os meus.
Apoiei-me no batente carcomido, sequer tinha forças para manter-me de pé. Constatava, em minha súbita vertigem, que não havia mais o que fazer nem contra o que lutar. Que o mais repugnante dos demônios era uma máscara no chão – e tinha o rosto de todos nós.
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