Aquele era um grande juiz! Sem dúvida, um homem de elevada sabedoria e grande perspicácia! Todos sabiam que, de suas mãos, a justiça jamais escapulia ou nelas claudicava. Um juiz de homens e, talvez, de deuses! Estava capacitado e tinha credibilidade para julgar quem quer que fosse...
Naquele dia, o tribunal estava deveras consternado! Um crime insano fora praticado: estupro seguido de morte de uma jovem não somente bela, mas de tenra idade; uma criança pura e cativante, um anjo descido dos céus!...
O juiz apresentou-se ensimesmado... Havia já um réu confesso, o caso parecia liquidado... Todavia, o austero juiz remexia-se inquieto em seu “trono” de poder, permanecendo cabisbaixo e um pouco alheio ao burburinho abafado que percorria o tribunal antes do início da sessão.
Estranhamente, levou algum tempo para dar andamento aos trabalhos e, nos primeiros rituais de inquirir o réu sobre o seu status de “culpado” ou “inocente”, ele titubeou um pouco, desviou o olhar e fraquejou a voz.
Todos os presentes entreolharam-se um tanto surpresos e interrogantes: o que estaria acontecendo? Aquele juiz sempre fora a firmeza em pessoa, seu olhar, embora aparentemente calmo e manso (como convém a um bom magistrado), era direto e certeiro ao encarar o público, especialmente o acusado.
Quando o réu, sem maiores delongas, declarou-se “culpado”, o juiz empalideceu notavelmente. A voz tornou-se soturna e ele fez questão de insistir uma vez mais:
- O senhor tem certeza de que quer mesmo declarar-se culpado?!...
O acusado nem pestanejou e de novo reiterou a sua culpa.
A sessão prosseguiu rapidamente no cumprimento das formalidades legais. Ao cabo da mesma, os doze jurados não tiveram a menor dúvida e, por unanimidade, o condenaram à pena capital:
- A morte será pouco para tão infame delito!, declarou solenemente o decano do corpo de jurados.
Naquela noite, em sua exuberante mansão, o imponente magistrado não conseguiu pregar olhos. O estômago se lhe revolvia nas entranhas, ele suava frio e tremia de angústia. Havia condenado à morte um inocente!... Sim, ele bem o sabia!... Aquele réu confesso jamais poderia ter cometido aquele crime! Ele bem o sabia... E como sabia!... Pois que fora ele próprio, o celebrado juiz, tresloucado de desejo e de insana paixão, numa ânsia desenfreada de possuir, ainda que à força, aquele tenro corpo, o autor da infâmia! Depois, assustado e desvairado com a própria ousadia, tratou de calar a vítima, sem dó, nem piedade!...
O tempo passou inexoravelmente, a vida parecia caminhar na normalidade de sempre, mas o eminente juiz cultivava agora uma ideia fixa: “Por que alguém, em sã consciência, iria se declarar tão incisivamente culpado de um crime que não cometera?!”
O sentimento de culpa que o espicaçava, aliado à sua proverbial perspicácia, levou-o a vasculhar a razão de tanta incoerência. Solicitou, pois, uma “entrevista” com o sentenciado poucos dias antes da consumação de sua pena. O pedido não era comum nos foros da justiça; porém, foi concedido. Questionado pelo juiz, o sentenciado começou a falar com uma também inusitada serenidade:
- Há alguns anos atrás, eu também já estive ligado a outro crime brutal da mesma natureza... Entretanto, um álibi “perfeito” e algumas coincidências circunstanciais foram suficientes para eu me safar brilhantemente da acusação.
No entanto, à medida que falava, o tom de voz do prisioneiro ia-se tornando rouco e inaudível, como se lhe custasse um grande sacrifício engatar as palavras. Ele fez uma pausa para recuperar um mínimo de tranquilidade, antes de continuar:
- Todavia, com o passar da vida, o julgamento maior da consciência prevaleceu e minha alma nunca mais viveu sequer um dia de paz!... De fato, eu não sou o culpado desta infâmia que agora me é imputada! Entretanto, eu preciso... eu devo... e agora vou expiar a minha culpa... da única maneira que posso!...
Uma outra pausa, um longo suspiro e um semblante indagativo, antes de concluir:
- Porém, Senhor Magistrado, já que abri a minha verdade a Vossa Excelência... peço-lhe uma contrapartida: por favor, me diga... me explique... o que o levou a vir até mim, buscando tais explicações?! A sua própria consciência talvez?...
O douto juiz nada respondeu. Cabeça baixa, olhos velados, deixou aquele cenário para nunca mais voltar!
*
´´ Nem tanto tempo assim havia se passado, quando uma manchete de jornal trouxe à baila, em letras garrafais, um furo sensacionalista: “MORTE DE AFAMADO JUIZ, PRESUMIVELMENTE UM SUICÍDIO, CONSTERNA O PAÍS... Nenhuma justificativa ou explicação plausível foi encontrada..``
Chegara, enfim, o momento de o eminente juiz exarar a sua última sentença: o julgamento de si mesmo, promovido pela própria consciência!... Com certeza, um tribunal muito mais sábio e justo!...
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