Eu nasci há tempos e na evolução natural acrescentei mais três pessoas na família, a esposa com quem me casei, o filho primogênito e a filha caçula. Passados mais vários anos, a esta família foram somados um genro, uma nora e dois netos quando eu e a esposa galgamos a escala dos avós. São esses avós os protagonistas desta história convertida de amor e paixão oponentes ao ódio e ingratidão. Eu era um bem sucedido funcionário público, com uma razoável aposentadoria de oito mil reais líquidos, duas casas na cidade, uma na praia e três carros. Josefa, minha fiel e dedicada esposa, foi companheira a me dar suporte nas atividades meritórias. Josefa, não por acaso tem esse nome: seu pai chamava-se José. Sendo ele de tradições religiosas, imaginou dar à primeira filha nome idêntico ao seu, acrescentando ao final a sílaba “fa”, que quer dizer família. Namoramos apaixonadamente por dois anos e nos casamos, para daí a dez meses nascer o primogênito Keye, forte e rosado, com todas as características de uma criança sadia. Nossa vida de casados corria a mil maravilhas para dez anos à frente vir à luz desse mundo a caçula Ana Rosa, também bem nascida, para alegria nossa e de seu irmãozinho.
Aos trinta anos de vida a dois, após termos comemorado as Bodas de Prata, aos 25 anos na maior harmonia conjugal, a família havia chegado ao número de oito pessoas, com os acréscimos de um genro, uma nora e dois netos. Na atividade funcional progredi de maneira trabalhosa e difícil em razão da competitividade ferrenha dentro da repartição pública. Josefa, por sua vez, cuidou dos serviços domésticos e dos filhos na caminhada da família.
Até essa ocasião do casamento, o relacionamento dos familiares era bom, mas começou a degringolar dali em diante, embora eu e Josefa ainda mantivéssemos o domínio da situação. Começou o desmoronamento do núcleo familiar quando o filho de Keye passou a ter a estima especial dos avós maternos. Instigado pela mãe, o neto vivia me pedindo presentes fora de propósito e suplicando para não vender a casa de praia nem a da cidade. Era claro que o comportamento do neto estava sendo orientado pela mãe, em virtude de não ter discernimento de ambição naquela idade. Ao tomar conhecimento do episódio, o genro, com inveja, passou também a vindicar para seu filho o mesmo tratamento dado ao filho de Keye. Corroído de inveja e utilizando o filho para satisfazer suas ambições, o esposo de Ana Rosa, com pretensões descabidas, despertou uma contenda com os demais membros da família, contrários à divisão dos bens em vida. Estava assim, declarada a guerra pela herança do meu patrimônio e das contas bancárias de Josefa.
Já idosos, convivemos daí por diante no meio daquele tiroteio e, para não haver derramamento de sangue, fui, pouco a pouco, cedendo aos caprichos dos ambiciosos. Vendi a casa de praia para distribuir equitativamente o produto da transação imobiliária. Foi mais uma contenda porque o quinhão tocado a cada quinhoeiro foi contestado.
Estremunhado pelas desavenças, fui ficando doente e desgostoso da vida. Em face da ingratidão dos herdeiros fui definhando até à depressão, enquanto Josefa ainda restava lúcida. Ana Rosa, com uma casinha de três na periferia da cidade, produto da herança distribuída em vida, foi quem deu guarida a mim e à mãe, sem neto por perto, porque Ana Rosa havia se separado do marido e o filho tinha sumido. Exterminados os nossos bens, vivendo de caridade, sem eira nem beira, extinguiram-se até as amizades porque não oferecíamos mais nenhum atrativo. Nessa ocasião Josefa também partiu desta para a outra vida, sem merecer nem um vaso de flores no seu velório participado por mim e mais meia dúzia de confrades vicentinos. Os que não se tocam não se comunicam nem se veem e, por mais íntimo que sejam, tornam-se estranhos. Foi o que aconteceu comigo na juventude acumulada, completamente desamparado pelos amigos e pela família.
Sem perspectivas na vida, morando num cômodo da casinha de Ana Rosa, constatei que havia ficado transparente, porque as pessoas que passavam pela rua não me viam sentado na calçada. Certo dia, um jovem andando e clicando no celular, como galinha quando come milho, tropeçou em mim, quase caiu e me derrubou da cadeira. Em vez de me pedir desculpas, destratou-me, afirmando ainda que ali não era lugar de velho ficar sentado. Sentindo-me ultrajado, tentei fazê-lo perceber que por certo teria me transformado em fantasma, motivo de não ter sido visto por ele. Noutra tarde, dei-me conta que minha voz também tinha desaparecido, quando perguntei as horas para Ana Rosa e ela, sem olhar no relógio de pulso, nem me respondeu. Todos falam com os outros como se eu não estivesse no mesmo ambiente. Às vezes intervenho na conversação, seguro de que o que vou dizer não ocorrera a ninguém e que vai ser de grande utilidade, mas parece que falo ao vento. Não me ouvem, não me olham, não me respondem. Então choro de tristeza e desencanto, retiro-me do ambiente e vou andar pela rua, sem rumos, sem saber para onde ir, porque ninguém me espera em lugar nenhum. Quando Ana Rosa ficou doente, pensei ter a oportunidade de ser útil, dando-lhe um chá especial que eu mesmo preparei. Coloquei-o no criado mudo e me sentei a esperar que o tomasse, só que ela estava vendo televisão e nem um só movimento me indicou que se dera conta de minha presença. O chá, pouco a pouco, foi esfriando e junto com ele meu coração gelou. Passei a noite toda chorando no quarto, sufocando os soluços no travesseiro. No outro dia cedo, ao entrar na cozinha para tomar café, estavam conversando Ana Rosa e o ex-marido e outra pessoa estranha. Cumprimentei-os com um entusiasmado “Bom dia!”, mas, sequer responderam-me, como se eu fosse uma assombração. Foi aí, pois, que me convenci de que sou mesmo invisível, um ser transparente e fantasmagórico.
Em outro dia, estavam lá na sala conversando, animadamente, os três: o neto, o pai e a mãe. O neto veio correndo para o meu lado, todo alegre, para me dizer que iríamos todos passar o fim de semana no campo. Fiquei muito contente. Fazia tanto tempo que eu não saia de casa, ainda mais para ir ao campo! No sábado fui o primeiro a me levantar. Quis arrumar as coisas com calma. Nós, os velhos, tardamos muito em fazer qualquer coisa, assim adiantei meu tempo para não atrasá-los. Rápidos entrava e saiam de um cômodo ao outro, de lá para cá e de cá para lá na casa, correndo e levando bolsas e esteiras para o carro. Eu já estava pronto e muito alegra. Permaneci na sala a esperá-los. Quando me dei conta, já tinham eles partido, o carro envolto na poeira da estrada desaparecendo, quando então compreendi que não fazia parte daquele “iríamos todos” porque fantasma não tem corpo material. No carro foram três e cabiam mais dois. Senti, mais uma vez, o coração apertado, os lábios tremendo, fazendo beicinho e engolindo a vontade de chorar, só soluçava. Não chorei alto, mas caí ali mesmo, desmaiado por cima das tralhas, e só voltei a mim depois que os vizinhos me socorreram.
Meu Deus, por que me maltratam tanto assim, se na vida tudo que tive e fui, era para minha família, que estava em primeiro lugar? Tudo era para todos. Que culpa tive eu por ter me tornado invisível?
Naquela época dos acontecimentos, restando somente a renda de um salário mínimo da parca aposentadoria, fui socorrido pelos vicentinos, entidade religiosa da Igreja Católica, e recolhido ao asilo. O jornalzinho semanal da pequena cidade estampou em manchete: “Abandonado pela família, velho que estava às mínguas, foi asilado na Casa do Vovô”
Asilado, tive um pouco de tranquilidade para imaginar quão cruel me fora o mundo e pude ainda transmitir na tela da mente todos os filmes de minha vida, desde o trabalho incansável para conseguir ser o que fui e ter casas e carros até a dilapidação de todo o meu patrimônio e cair na sarjeta. Desentendimentos familiares evocam desencantos avoengos e ingratidões sociais desencadeiam hipocrisias nos macrossistemas da vida.
Entretanto, não desanimei, porque ainda restava um pouco de matéria combustível em mim, para queimar e, ascendendo à fogueira, pude constatar horizontes a perseguir. E fui à luta em busca da felicidade familiar e, por consequência, da social.
Do livro “Comendo fogo e cuspindo cinzas” – Págs. 87 a 91
Na 55a. Revista Ponto & Vírgula - Págs 9/10
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