Outra história verdadeira: Ícaro vivia no Triângulo Mineiro quando conheceu Sojão, um homem de meia-idade, mendigo morador de rua num pequeno lugarejo urbano com pouco mais de dez mil habitantes.
Quando jovem, o desafortunado homem era vistoso, romântico e vigoroso, por quem as moças da aldeia nutriam fortes atrações amorosas. Assim, não foi difícil esposar uma das mais belas prendas e por ela se apaixonar loucamente. Casaram-se e viveram um romance caloroso por alguns anos. Com ela teve um casal de filhos. Motivada por sua beleza, a esposa desviou-se pelos caminhos da traição, jogando o amoroso marido na amargura do despeito e os filhos, ainda jovens, na grande cidade dos traficantes e violência. Desgostoso pela preferência da esposa dada a outrem, Sojão perdeu a vontade de trabalhar e se divertir, caindo degrau por degrau da escala social até a marginalização. Os filhos, na metrópole, enveredaram no vício das drogas, associando-se aos grandes traficantes até caírem na cadeia.
Desventurado, Sojão passa a perambular pelas ruas da cidade na companhia de um cão também abandonado, fiel e amigo. Nutrem, um pelo outro, grande amizade. Pede para os corações magnânimos apenas agasalhos e alimentos para si e o amigo Sultão. Sojão é um bom homem, conhecido por todos da cidade e estimado pelos corações generosos, embora tenha perdido a família, a memória, a própria identidade e dos amigos sobrara apenas um. É sóbrio e tranquilo, conformado como morador de rua e confiante em Deus. Ao receber algum pedaço de pão ou uma calça velha agradece com reverência ao benfeitor com um “Deus lhe pague”. Qualquer prato com arroz, feijão e carne, que sobra para lhe saciar a fome, reparte com o grande amigo. Quaisquer alimentos ganhados divide com Sultão. Dorme, ora debaixo de uma ponte, ora nos galhos de uma mangueira sobre uma prancha adaptada com colchão. Em ambos os lugares está sempre o seu amigo, enrodilhado na cabeceira, guardando-o de malfeitores. Também quando dorme Sultão, Sojão fica desperto, vigiando-o contra agressores humanos ou animais maldosos. E assim vão vivendo os dois ao deus-dará.
Após o primeiro encontro de Ícaro com os dois, passaram os três a se reunir a fim de melhor conhecer o ancião. Então, certo dia Sojão esclareceu como ficou conhecendo Sultão:
- Estando com fome, certo dia ganhei um pedaço de pão para o almoço e fui comer debaixo da ponte. Sultão recebeu-me festejando minha chegada e passou a olhar com olhos ternos e fixos o pedaço de pão. Deu-me pena ver o seu comportamento. Pensei logo que estivesse com fome e dei-lhe um pedaço do meu pedaço de pão. Ele comeu sofregamente e permaneceu comigo como a me agradecer. Naquele nosso repasto foi selada a amizade que perdura até hoje.
Em outro, Ícaro quis saber se o bom e humilde homem tinha algum desejo na vida, em virtude de sua vontade de poder satisfazê-lo. Pensava, naquele instante, que ele iria pedir uma casa para morar ou um emprego para sobreviver. Qual não foi a sua surpresa ao ouvir, com voz firme e suave:
- No momento desejo ter um cachorro-quente para nosso jantar.
Ícaro foi até uma lanchonete e mandou fazer um cachorrão-quente bem recheado (pão tipo baguete inteiro) e levou para o mendigo. Ele arregalou os brilhantes olhos afetuosos e encantadores e, com o sorriso mais lindo que Ícaro já presenciara disse:
- Tudo isso?!
Agradeceu o benfeitor com o costumeiro “Deus lhe pague” e retirou as salsichas do recheio, dando-as ao Sultão que, ávido, saciou a fome. Ícaro não entendeu o gesto de Sojão: a salsicha é mais suculenta que o pão, pensou. Entre intrigado e surpreso, indagou porque dera a melhor parte ao animal. Parece incrível, mas a resposta do mendigo foi:
- Para um grande amigo o melhor pedaço.
Ícaro despediu-se de Sojão com um grande abraço, afagou as orelhas de Sultão e saiu dali refletindo como é bom ter amigos verdadeiros. “É UMA LIÇÃO PARA JAMAIS SER ESQUECIDA.”
A mensagem ficou martelando em sua cabeça: Para um grande amigo o melhor pedaço. Para um bom amigo, o pedaço melhor. O melhor pedaço é para um grande amigo. O melhor pedaço... Um grande amigo...
*Do livro: Comendo Fogo e Cuspindo Cinzas – Págs 20/21/22
*Texto de José Antônio de Azevedo, em destaque na 57a. Revista Ponto & Vírgula - Págs. 9/10 (outubro/novembro/dezembro/2021)
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