TALVEZ O QUE PAREÇA ENCAMINHAR MINHAS IDEIAS...- Perce Polegatto

     Talvez o que pareça encaminhar minhas ideias para a ilusão das explicações todas não passe de outro sonho do intelecto, não menos complicado que os raciocínios que nos esclarecem e nos libertam do sonho há pouco despertado por nossa consciência primata, o sonho mal amanhecido de nossa existência.
    Na verdade, eu gostaria de eliminar para sempre muitos dos gestos que fiz, até mesmo na memória, e que pareciam certos e razoáveis quando os pratiquei, como se nunca fosse envergonhar-me deles mais tarde. Isso continua, com minha queda pela Josie. Minha queda, eu disse. A Queda, segundo a fantasiosa gênese bíblica. Mas que besteira: quase todos os seres vivos dependem dessa queda para continuar existindo. E mesmo que eu e a Josie nunca produzíssemos descendentes, minha atração por ela seria fortemente a mesma. Além disso, os dados reais da vida interessavam-me cada vez menos, que não me permitiriam ser como sou, quase um artista sem metas definidas fora de sua febre. Por outro lado, quando me aproximava da Josie, essa minha queda se assemelhava a uma vertiginosa ascensão, já que eu sentia progredir na escala dos impulsos sempre mais intensos de um erotismo irrefreável e dominador. A essa altura, o que meu instinto procurava não era que eu resistisse e me reafirmasse, mas que eu cedesse e saísse de mim mesmo, sem restrições, e crescesse até ela, assim como Coco Chanel, seguindo seus instintos felinos e sem contar esforços, enroscava-se entre a sinuosidade de uma árvore para alcançar os telhados. Eu não era o mesmo de alguns minutos antes, e entendia que a Josie também não. Nem o mesmo de algumas semanas atrás, assim como ela agora diferia daquela recepcionista repetitiva que eu conhecera, por trás do balcãozinho envernizado. Quando eu a beijava, e sentia seus dentes delicados mordendo-me os lábios, eu não queria mesmo evitar essa queda entre os dias. Estava envolvido com minha natureza real. E o que eu beijava era a minha própria ousadia adormecida.

                                Do romance "Projeto esvanecendo-se"


*Trecho do romance "Projeto esvanecendo-se" do escritor Perce Polegatto, em destaque, na página 8, da 57a Revista Ponto & Vírgula (outubro/novembro/dezembro/2021)

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