A CULPA É DE LENIN- Ithamar Vugman

    

 









    Uma série de eventos aleatórios antecede meu aparecimento como mais um habitante terráqueo. Amado por alguns. Detestado por outros.
    Tudo começa com Simão, meu futuro pai. Muito jovem, abandona para sempre Bessarábia, sua terra natal. Deixa para trás família. Antes da eclosão da Primeira Guerra Mundial emigra para o Brasil. Mora em Curitiba. Inicia nova vida em terra estranha.
    O segundo evento acontece em 1917. Neste ano profundas transformações políticas e sociais ocorrem na Rússia. A Revolução de Fevereiro instala o Governo Provisório. O Czar Nicolau II renuncia. Fim da monarquia autocrática russa. Reformas democráticas têm início. A Revolução de Outubro leva Bolcheviques ao poder. Vladimir Ilitch Ulianov, pseudônimo Lenin, é o grande líder. Kerensky, primeiro ministro social democrata, é destituído. Regime ditatorial comunista é implantado. Feroz guerra civil dura três anos. Fronteiras da Rússia são fechadas. A proibição de cruzar as fronteiras constitui evento de excepcional relevância para minha vida.
    Naum, irmão mais velho de Simão, casa-se com Paulina, irmã mais velha de Fani, minha futura mãe. Paulina engravida. O jovem casal deixa Odessa. Vai para pequena cidade da Bessarábia, antes do fechamento da fronteira. Samuel nasce no aconchego da família de Naum. O casal não retorna para Odessa. Emigra para o Brasil. Encontra Simão em Curitiba. Cruzar o Oceano Atlântico é mais fácil do que cruzar a fronteira da Rússia. O futuro em terra desconhecida lhes parece mais promissor do que na URSS.
    O terceiro evento ocorre em 1923. Elias, pai de Paulina, deseja conhecer um país tropical. Deixa Odessa. Leva junto a esposa Nanci e seis filhos. Cruza o Atlântico rumo ao Brasil. Desembarca no país tropical. Muda de opinião. Não retorna para a URSS. Começa vida nova. Fixa residência em Curitiba. Junto da filha, genro e neto. Fani conhece Simão. Casam-se. Cumprem suas obrigações matrimoniais. Nasce Ana. Julho de 1926. Apresento-me ao mundo dois anos mais tarde. Quatro de agosto de 1928. Evento totalmente destituído de importância para a humanidade. Evento de crucial importância para minha vida.
    A culpa é de Lenin. Indubitável. Ausente Lenin, Fani não vai ao encontro de Simão. Sou um ser diferente. Para o bem. Para o mal.



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Crônica de Dr. Ithamar Vugman, em Destaque, na página 18 da 57a. Revista Ponto & Vírgula (outubro/novembro/dezembro/2021)


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