Os antigos romanos acreditavam que a memória dos homens habitava o seu coração e não o seu cérebro. No latim, sua língua natal, a palavra “coração” era “cor”.
Somos descendentes dos latinos, mesmo após a influência dos gregos, dos árabes e agora dos americanos. Não acreditamos que o coração guarde a nossa memória, mas insistimos em dizer que os sentimentos amorosos ali estão ocultos. Quando não, usamos o verbo “decorar”, para dizer que guardamos no coração um pedaço da nossa memória. Os romanos notabilizaram-se por disciplinar as relações pessoais. Os gregos, as relações sociais.
Os gregos conseguiram anotar que o homem histórico está submetido a duas espécies de leis: a lei instalada pela natureza, as leis criadas pelos homens, sejam éticas, morais ou jurídicas.
As leis fixadas pela natureza não podem ser derrogadas por atos humanos, como aquelas que geram o sono, a fome, a vida ou a morte. Ao contrário, as normas humanas podem ser atropeladas, sejam éticas, morais ou jurídicas. As leis da natureza são inflexíveis e inderrogáveis. As normas dos homens são flexíveis e derrogáveis.
Ampliando o debate, colocando-o sob a lupa de Sócrates, de Platão, de Rousseau, do cristianismo e outras vertentes, o extraordinário escritor Eduardo Gianetti, examinou extensamente a questão em um livro que tem como título "O ANEL DE GIGES” (Companhia das Letras).
Gianetti examina a historia ou a fábula de um pastor que encontrou um anel mágico que, girando seu aro, deixava o portador invisível.
Como o homem é dotado de uma dupla personalidade, uma interna e oculta e a outra exteriorizada para o público, notabilizou-se por agir segundo sua vontade e muitas vezes contra as normas sociais.
Indaga-se então: se ele é portador do anel de Giges, podendo tornar-se invisível, conforme sua vontade, como ficariam seus desejos ocultos? Realizaria seus desejos ilícitos e ocultos contra as regras sociais? O que seria da realidade se existisse o anel de Giges supostamente encontrado na antiquíssima Lídia, hoje Turquia?
Se um homem honesto encontrasse o anel de Giges, usando-o para tornar-se invisível, o que conseguiria fazer se saísse por aí executando desejos? Não encontrando o anel de Giges, como o homem, durante séculos, conseguiu lidar com seus desejos ocultos?
Platão e seus irmãos debateram com Sócrates a importância ou a inutilidade do anel de Giges, séculos antes de Cristo e de Freud!
A lição deixada por Sócrates, registra Gianetti em seu livro, marca o grau do seu conhecimento: “a sabedoria nasce quando se reconhece não saber o que se supunha sabido”.
Por esses caminhos um latino trouxe para Roma um vasto conhecimento da sabedoria grega, como palavras do seu idioma. Trata-se de Cícero que viveu nas proximidades do advento do cristianismo. Entre nós, Cícero notabilizou-se pelo seu discurso contra Catilina. Na política envolveu-se com César. Fugindo de Roma após o assassinato de Cesar, foi preso e decapitado. Sua cabeça e suas mãos foram expostas em Roma.
O caminho trilhado até hoje pelos homens não se afasta da duplicidade de suas almas. Uma interna e oculta e a outra externa e pública. As duas submetidas às inderrogáveis leis da natureza, e pelas derrogáveis leis da sociedade. O livro de Gianetti de Giges necessita ser lido pela qualidade da matéria como pela extraordinária habilidade do seu autor.
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Crônica de Dr. Sérgio Roxo da Fonseca, em Destaque, na página 17, da 57a. Revista Ponto & Vírgula (outubro/novembro/dezembro/2021)
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