O CAVALEIRO DO SÉCULO- Perce Polegatto

     Alguém, não me lembro quem, disse que eu não passaria desta noite. Mas não é por isso que me encontro imobilizado nesta cama. Não é por isso que não me levanto daqui. Eu nem estou doente. Não passaria desta noite... Não me lembro quem.
    O último sonho de que me recordo perfeitamente, só não podendo afirmar se da noite passada ou da anterior ainda, é o do cavaleiro fardado como nos tempos da República, avançando solitário por uma rua de casas fechadas, que é noite alta, e todos dormem. Ele se detém, com o cavalo ainda agitado. Ergue, em uma das mãos, o chapéu que acaba de tirar da cabeça, numa enfática saudação a ninguém:     “Viva o século vinte!”. Tanto minha razão quanto minhas sensações apontam para uma última noite do ano, na virada dos séculos. Logo atrás dele, uma minúscula janela de madeira abre-se com cautela, deixando ver o rosto silencioso e impassível de uma mulher muito velha, que se protege com um véu ou um lenço. “Viva o século vinte!”, ele repete, impetuoso, tentando envolvê-la com seu entusiasmo. “Viva o século vinte!” A janela se fecha sem qualquer ruído. Uma rua de casas desertas. Uma noite de abafado silêncio. Um cavaleiro agora abatido, emissário de notícias vãs.
    “Vim lhe trazer seu medicamento”, ela entrando com uma pequena bandeja. “E lembrá-lo de que não passará desta noite.”
“Como? Quem disse?”
    “Não é preciso que digam. É assim. Acontece.”
    “Que noite? Esta noite? Mas que insensatez é essa? Não é justo.”
    “Não fique assim. Acalme-se. Não se trata de justiça.”
    “Do que se trata então?”
    “Como vou saber? Sou uma enfermeira. Tome. Cuidado para não deixar cair. Você consegue?”
    Ela também não sabe dizer por que não consigo me levantar daqui. Eu nem mesmo estou doente. E me sinto lúcido. Fiquei pensando no sonho com o soldado da República, a única imagem insensata dos últimos dias, se bem que carregada de nitidez e quase tão lógica quanto qualquer estúpida realidade.
    “Eu me lembro de tudo. Por que não compreendo?”
    “Lembrar não é o bastante”, conclui a enfermeira distraidamente, enquanto substitui um jarro de água e um prato com restos de torradas ou biscoitos.
    “Eu me lembro de tudo”, repito num murmúrio. “De meus avós no leito de morte, também imobilizados. Mas não me parecia injusto. Eram muito velhos.”
    “Nada disso parece justo, não é?”
    “Sim, eu me lembro. Minha avó não reconhecia as pessoas. Agonizava dia e noite, deve ter sofrido muito. Inutilmente, aliás. Pois no fim...”
    “Todos nós sofremos inutilmente. Pois no fim... Nada disso parece justo, não é?”
    “Eu nem estou doente. Há algo errado. O que disseram sobre mim? Você deve saber.”
    “Só sei que a Viviane não pode vê-lo nesse estado. Ela também já sofreu muito.”
    “Viviane? Onde ela está? Por que não veio me ver ainda?”
    “Os médicos a desaconselharam. Ela não suportaria vê-lo assim. Seu rosto, por exemplo...”
    “Assim como? Que estado? O que tem meu rosto?”
    “Fique calmo, não se preocupe...”
    “Não me preocupar, você diz? O que tem meu rosto? Eu nem estou doente...”
    “Olhe, fique calmo, por favor. Da última vez que ela esteve aqui, vi que chorava muito e só fazia recordar todos os bons momentos que vocês dois passaram juntos.”
    “Não é possível...”
    “Mas foi o que ela fez.”
    “Não, não estou mais pensando nela. É isso tudo, entende? Não consigo compreender. Você... é algum tipo de anjo?”
    “Claro que não!”, ela ri. “Que ideia! Me desculpe, não estou rindo de você. É que outro dia mesmo eu estava... Parece incrível mesmo. Olhe, você precisa dormir. Tenho certeza de que uma boa noite de sono...”
    “Dormir? Mas se não vou passar desta noite! Você mesma disse...”
    “Eu? Eu não. Eu não disse.”
    “Eu ouvi perfeitamente. Eu poderia jurar...”
    “É sempre assim, não é? Poderíamos jurar...”, ela reafirma, enquanto termina de organizar uns detalhes e enquanto se despede, fechando atrás de si a porta do quarto.
    Por fim, adormeci. E fui despertado carinhosamente pela mesma enfermeira, não sei quanto tempo mais tarde.
    “Eles estão aqui. E precisam ver você.”
    “Eles quem?”, murmuro sem nenhuma certeza do que estou dizendo. “Quem quer me ver?”
    “Esses dois senhores. Vieram de muito longe.”
    “E Viviane? Onde ela está?”
    “Vou pedir que entrem.”
    Dois homens de vestimentas negras, não me parecendo nada familiares. Ambos, após um gesto quase simultâneo, segurando os chapéus entre as mãos, respeitosamente, sentam-se nas cadeiras da esquerda, tão lenta e atenciosamente como praticam todos os gestos. Pretendo perguntar-lhes qualquer coisa, sinto que não tenho o que dizer. Um deles, discretamente, anuncia:
    “Morreram todos.”
    Olho para eles sem reação, estranhamente seguro de meu silêncio, o que deve ser, portanto, uma reação.
    “Como é possível?”, reflito admirado.
    “Não é difícil compreender. Pois é sempre assim.”
    “O que os senhores sabem sobre a Viviane? Onde ela está agora?”
    “Não sabemos. Uma mulher que parecia ser ela...”, o mensageiro se interrompe, volta-se interrogativamente para seu colega, antes de prosseguir. “Mas não, isso já não faz parte da mesma mensagem.”
    A enfermeira surge outra vez, em seu ritmo costumeiro, nem muito ágil nem muito lenta.
    “Os senhores podem sair. O médico lhes dará a recomendação.”
    Que recomendação, o que é isso de recomendação?, penso de olhos fechados. Enquanto se retiram, os agourentos mensageiros desejam-me melhoras.
    “Como podem desejar minhas melhoras? Vocês nem me conhecem.”
    De onde terão saído esses homens? Para onde irão agora, depois de repassada sua mensagem? O que tem meu rosto? Eu nem estou doente.
    Não preciso fechar os olhos para fazer surgirem imagens quase certamente vividas por mim em dias outros, não importam os dias, mas algumas porções deles, como quando eu fora expulso por meus pais, do que era meu quarto e minha casa, quem diria, ter vivido tanto ainda, quando me pareceu aquele o fim de minha infância e de meus sonhos. Pensar na hospitalidade com que sou tratado hoje, neste lugar, cama confortável, lençóis limpos, pessoas assistindo-me. A travessia de toda a fase seguinte, atormentada por crises de diferentes gêneros, por momentos de tal gravidade e ruptura que, entre minhas inquietações e insônias, um pesadelo apenas, que se seguisse, poderia ter-me feito desmoronar desgraçadamente sobre mim mesmo.
    E o sonho recente, a atmosfera soturna, a solidão da pequena cidade, o século vinte... Ora, parece mais claro agora: o século vinte. Foi onde nasci. Onde. Como sempre, confundimos palavras e não nos poupamos de usá-las, significando tempo ou espaço, pois deixe isso e aquilo para trás, pense no que vem à frente, isso aconteceu em tal e tal época, de lá para cá as coisas mudaram, estamos a alguns quilômetros da capital, a alguns quarteirões de casa, a alguns anos da morte.
    Todo este conforto hoje, porém tudo me inspira a surda sensação de um difícil desafio. Talvez a vida continue exigindo de mim novos sacrifícios, não sei quais nem de que tipo. Não sinto medo. Sofro com uma grande curiosidade. Os grandes atos de bravura são invisíveis. Imperceptíveis aos que pensam que podem ver tudo. Quem sabe quanto custa a um pequeno pássaro sem nome, ensinado a acreditar no sol, atravessar sozinho uma noite inteira de tempestade e escuridão? Desdobrar-se em asas e crenças, reinventar-se durante a tormenta. Não é preciso temer por ele, pois, de alguma maneira, estará voando com destino ao dia em que terá de aceitar seu próprio nome.
    A enfermeira, suavemente. Nem sinto seus passos. Vem apenas para apagar a luz. Ajeita a barra do lençol sob meu queixo. Pela serenidade de sua expressão, deve ter se acostumado ao meu rosto.
    “Descanse um pouco... Como é mesmo seu nome?”
    “Meu nome... Não me lembro. Não é possível.”
    “Você disse que se lembrava de tudo.”
    Não faço ideia. Como é possível? Não consigo suspeitar de qual seja meu nome. Meu esforço mental parece confirmar meu cansaço, um cansaço do qual também não me lembro a causa. Minha memória entoa suavemente a cantiga infantil que retorna não me atrevo a dizer de onde.
Alecrim, alecrim dourado,
que nasceu no campo sem ser semeado...
“Foi um acidente, não foi?”, digo de olhos fechados.
“Não”, ela explica. “Seus pais realmente o desejaram.”
    Penso estar falando com ela, vou dizer-lhe que não acredito nisso, mas ela já se foi, e assim como não percebi que havia entrado, não percebi que se fora, tudo se passa enquanto estamos distraídos. Tudo se passa assim. E quase sempre, entre o nascimento e a morte, estamos distraídos. As janelas de minha consciência fecham-se sem qualquer ruído. Um mundo de casas desertas. Uma noite de abafado silêncio. Um cavaleiro abatido, de longe o mesmo que bradava um ano atrás: “Viva! Viva o século vinte!”. Um mês atrás, talvez. Um século. Um sonho. Eu nem sei se estou doente. Por isso, não consigo me levantar daqui.
    A prestativa enfermeira aproxima-se pela última vez, sua voz bem perto de meu rosto.
“Eu preciso ir. Mas não posso beijá-lo.”
“Eu compreendo. Não há nenhum problema. Obrigado por tudo”, digo a ela sem abrir os olhos.
“Você precisa descansar. Vou sair agora. Quer que eu deixe alguma luz?”
(da coletânea “Inconsistência dos retratos”)

*
Conto de Perce Polegatto, publicado nas páginas 56/61, da 18a. Antologia Ponto & Vírgula - Poemas, Contos e Crônicas, lançada dia 18-12-2021 no Hotel Nacional em Ribeirão Preto.
Editora: FUNPEC/RP
Coordenadora; Irene Coimbra

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