MANCHA- Raquel Naveira

     Estava tão feliz com meu vestido de seda azul-clarinho. Sentindo-me pronta. Na hora de sair, percebi a mancha: pontos de tinta preta num desenho impreciso como marcas de salitre numa parede, sardas de velhice na pele ou gotículas de lama duma poça de água pútrida. Como aconteceu isso? O traje era perfeito, nem fui à festa, nem vi como aconteceu esse acidente.
    O azul me iluminava, expressava minha alegria de entrar pelas portas desta cidade que amo. Mas houve um pequeno senão. Agora terei que trocar de corpo espiritual, de lavar a veste com sangue e tabletes de anil. 
    O poeta Manuel Bandeira (1886-1968) lançou a teoria do poeta sórdido. Aquele em cuja poesia há a marca suja da vida. E ele explica: vai um sujeito, o sujeito sai de casa com a roupa de brim branco, bem engomada, e, na primeira esquina, passa um caminhão, salpica-lhe o terno com uma nódoa de lama. O poema deve ser como a nódoa no brim: fazer o leitor se desesperar. A poesia-orvalho, romântica, deve ficar para as menininhas, as estrelas alfas, as virgens e as amadas sem maldade.
    É um desabafo de quem não aceitava mais a arte poética tradicional, de quem desejava liberdade artística total, na forma e no conteúdo. Uma poesia que não falasse apenas do lado belo da vida, mas que causasse impacto, surpresa e levasse o leitor às raias da irritação. Uma poesia que incomodasse e transgredisse as regras.
    Concordo apenas em parte com Bandeira. Toda poesia tem substrato social. É gesto, atitude, coragem. Mesmo quando o poeta aborda temas como o amor e a natureza, mostra um inconformismo, uma vontade de fugir da realidade, que o indigna e à qual não se submete.
    O paletó e a calça do poeta eram de brim, um tecido forte, de algodão, próprio de armar tendas no deserto. Minha túnica era de seda fina, agradável ao toque, feita com fios de amoreira. Não tinha ruga, nem mácula, nem coisa semelhante. E agora, como vou me apresentar naquela gloriosa ocasião que sonhei?
    Terei sido injusta? Preciso acelerar minhas obras, cobrir folhas e folhas com letras e símbolos, retirar desvios e vaidades da caminhada de peregrina. Eis a minha vida, o meu plano, meu mapa de viagem, o que pude entregar até aqui.
    Talvez a roupa, para revelar meu eu profundo, devesse ser branca, como a daquele sujeito.

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Crônica de Raquel Naveira, em destaque, na página 18 da 58a. Revista Ponto & Vírgula (janeiro/fevereiro/março/2022)


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