Quando ainda não percebia tais diferenças, ao fim das aulas, costumava desviar-me do caminho de volta, sem que ninguém soubesse. Passava por uma casa cuja cerca de grades isolava um jardim bem arranjado e de onde se via a ampla janela da sala, vidros revelando cortinas opacas que não permitiam à visão ir além de sua cor amena, discreta e hostil. Desnecessário o aviso – NÃO ULTRAPASSE – próximo à gárgula do portão: toda a fachada repetia, por si só, uma mensagem semelhante, no silêncio de qualquer idioma. Eu deitava cuidadosamente a bicicleta, sentava-me no degrau do portão, fingia estar estudando, e deixava-me ficar ali para ouvir o que de mais belo e mágico conhecera até então em minha curta vida: o piano. Por vezes, tão suave que poderia acompanhá-la o fim da tarde, outras vezes deslizando velozmente sobre minúsculos diamantes, a música fluía daquele cubo envidraçado, sem que o pianista, quem fosse (como na fábula oriental o avarento franqueava ao mendigo a fumaça de seu assado e lhe acrescentava como donativo o tilintar de suas moedas), imaginasse ofertar ao menino encantado o que a outros cobrava em dinheiro e custava sua casa com jardins, sobre sólidos pilares de segurança. Eu ficava ali, ouvindo o piano, clandestinamente. O resultado dessa beleza, após séculos de sonho e tragédia entre as biografias, modificava minha tarde e minha vida, antes que eu desmistificasse também, com a curiosidade dos adultos, aquelas fascinantes composições, maculando-as por conhecer-lhes o nome e o número, o autor e sua escola. Mas eu ficava ali, sob a gárgula e o aviso obsoleto, junto ao jardim proibido e ante os vidros que davam para outro mundo, desejando que aquelas melodias durassem sempre e fossem a minha vida. Se, de um lado, as cortinas delimitavam minha ansiosa visão, os sinos e os cristais que o piano punha ao vento lançavam-me a ultrapassar os limites das diferenças, o estigma das distâncias, o artista e o seu ouvinte secreto, sentado no degrau do abismo.
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Trecho de “A conspiração dos felizes” de Perce Polegatto, em destaque, na página 9, da 58a. Revista Ponto & Vírgula (janeiro/fevereiro/março/2022)
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