Ainda menino, gostava de escrever livros que não existiam, que não passariam a existir. Criava a história toda, mas não me animava a redigi-la. Adquiri o vício absurdo de associar livros às coisas que me pareciam importantes, referindo-me, por exemplo, ao amanhecer de um dia como ao início de uma página – o que, mesmo em minha imaginação viciada, não se pautava de muito sentido, já que o dia se processava de baixo para cima (da manhã para a noite), assim como eu o percebia, enquanto a página de um texto ocidental me conduzia de cima para baixo. Não importa, de fato isso não importava, porque sempre me senti livre para criar confusões. E me referia mentalmente à primeira amada como Capítulo 1.
Ninguém podia saber que eu a amava. Ninguém podia saber que era ela, especialmente ela, a Capítulo 1 de minha história viva. Registrada em foto coletiva da turma do catecismo, perto de completarmos nossos dez anos de idade: lá estava ela, um degrau acima, tão longe de mim. Uma paixão devastadora, sob a égide e o surdo silêncio dos anjos que povoavam as Escrituras. Eu não sabia ao certo o que era o sexo. Era um anjo reprimido, potencialmente humano. O fato é que Capítulo 1 me encantava loucamente, e eu não procurava entender os motivos.
Tempos mais tarde, revendo álbuns, foi meu irmão quem lembrou, identificando-a. Apontou seu rostinho com indicador objetivo, livre de sentimentos. Você gostava dessa menina aqui. (O quê? Como ele podia saber?) O nome dela era Miriam. Miriam? É, não lembra? Estudou mais um ano na mesma escola que nós, antes de a gente se mudar. Em outro horário, acho que era à tarde. Só que eu não lembrava mesmo. Então, Capítulo 1 havia se estendido um pouco mais em minha vida, e eu nem soube mais sobre ela. Em que outras páginas poderia tê-la encontrado sem minha pesada, incômoda, paralisante timidez? Mas, claramente, nada disso tinha agora a menor importância. Porque estava prestes a ler-viver outro capítulo que me acontecia: a Marjorie.
*
Trecho do romance “Projeto esvanecendo-se”, em destaque, na página 16 da 59a. Revista Ponto & Vírgula - abril/maio/junho/2022
Comentários
Enviar um comentário