MEU IRMÃO É INOFENSIVO, SILENCIOSO...- Perce Polegatto

    
    Meu irmão é inofensivo, silencioso. Guarda algo da infância, melhor dizendo, de sua infância. Do que foram seus primeiros anos, das poucas brincadeiras que o distraíam, conservou o que é ele próprio, entre escassas memórias, e cresceu esse adulto secreto, esse rapaz profundamente nublado, essa criança triste. Seus dezoito anos nada somaram à infância de quatro. Só fisicamente se revela sua idade. Ciclos e processos, que nos condenam, ignoram que ele não tenha deixado seu mundo – e o consomem, como a todos nós.
    Ele nunca sai sem o seu telefone. Sendo um brinquedo leve (o que restou: auscultador de plástico e base com o disco descascado, tendo o fio flexível se perdido desde a infância), ele o traz no bolso das calças. Usa-o sempre que algo lhe desperta a atenção ou o perturbe.
    De repente, ele chama por alguém, diz que está em perigo. Toco seu ombro, seu rosto. Que foi? Não quer me contar o que viu? O medo o domina por mais um instante, risca seu rosto como uma faísca. Ele se volta, fixa a banca de jornais. Um periódico traz como manchete: MENINA DE OITO ANOS VIOLENTADA E MORTA. Os três homens fugiram.
    A manhã se deteriora, amarga em minha boca. O dia me ameaça com menos esperanças. Volto a meu irmão, eu sem a calma de antes. Diante de um muro, ele fala ao telefone. Então, antes que eu me aproxime, lentamente, em meio ao que nunca pressinto, começa a sorrir. Não ouso interrompê-lo, fico esperando apenas, ainda a sensação das manchetes. Posso compreender que se sinta em perigo, ele também uma criança, à mercê do mundo, a menina violentada é sua semelhante. Fala docemente ao seu telefone, o fio há muito perdido. Docemente, como nenhum homem privilegiado pela normalidade.
    Não como se conversa com um amigo, mas com um anjo. Não uma pessoa, mas uma fada. O menino de olhar gêmeo ou a santa que namore com ele o namoro das crianças. Mano, quer ouvir o meu sonho? Mas eu não tenho nenhum. Sou um homem normal, como os outros. E há tanto tempo não sei como é chorar.



O telefone pela manhã (da coletânea “Lisette Maris em seu endereço de inverno”)

* Trecho da Coletânea "Lisete Maris em seu endereço de inverno" de Perce Polegatto, 
em destaque, na página 10, da 63a. 
Revista Ponto & Vírgula (abril/maio/junho/2023)



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